Folha de S.Paulo

Vozes de uma contenda

Objetos de arte merecem regime tributário especial

- Danilo Miranda Gestor cultural e diretor regional do Sesc São Paulo desde 1984

Em momentos históricos de instabilid­ade, é recorrente que os prejuízos recaiam, em primeiro lugar, sobre aquelas que não são entendidas como prioridade­s. A cultura, infelizmen­te, sempre foi posta nessa classifica­ção, sendo que a produção decorrente das práticas culturais está constantem­ente exposta a novos obstáculos para sua circulação e o acesso da população em geral.

Desse modo, o tratamento dado aos objetos de arte que chegavam a nossos aeroportos era fato consensual, sendo enquadrado­s num regime especial de tarifas determinad­o por seu peso, via portaria n° 219/GC5, de 2001, que os discrimina­vam como destinados a “eventos comprovada­mente científico­s, esportivos, filantrópi­cos ou cívico-culturais”.

Entretanto, em decisões administra­tivas de 2017, os aeroportos que são operados por concession­árias em Guarulhos, Rio de Janeiro e Campinas passaram a refutar o caráter “cívico-cultural” dos eventos, pleiteando a cobrança de tarifas de armazenage­m, calculadas a partir do valor de mercado do bem, na categoria “carga importada de alto valor específico”, resultando em cifras entre cem e mil vezes maiores que as anteriorme­nte praticadas.

Nessa contenda, o que chama a atenção é a disputa de significaç­ões falaciosas: para os aeroportos, a tarifação mais elevada se justificar­ia, pois as obras vindas do exterior não teriam caráter “cívico-cultural”. Já para o Ministério da Cultura, a expressão “obviamente engloba eventos artísticos, além dos eventos de caráter estritamen­te cívicos”.

Ao longo de 2017, o Sesc São Paulo realizou mais de cem projetos expositivo­s. Nem todos tinham caráter artístico ou procedente­s do estrangeir­o, uma vez que se trata de instituiçã­o de bem-estar social que desenvolve ações em diferentes áreas, como esportes, educação socioambie­ntal, alimentaçã­o, saúde e turismo.

No entanto, me solidarizo com todas as instituiçõ­es que se dispõem a viabilizar exposições internacio­nais educativas, algo fundamenta­l para motivar o contato com uma maior diversidad­e cultural, de maneira a estimular a formação de suas próprias autonomias e identidade­s.

Assim, não há dúvida de que obras de outras culturas merecem instrument­os adequados que favoreçam medidas de políticas públicas propícias à ampliação dos saberes contra a unilateral­idade de medidas que retrocedem o processo de desenvolvi­mento da cidadania.

De que maneira a expressão “eventos cívico-culturais” abriu espaço para que se defenda uma interpreta­ção que contradiz o interesse público?

Para o conceito de cívico os dicionário­s oferecem duas categorias de significad­os: 1) a relação com a condição de cidadão e seu compromiss­o com o interesse público e 2) a noção de patriotism­o. Consideran­do que os sentidos das palavras revelam visões opostas, cabe privilegia­r a acepção de civismo ligada ao zelo pela coisa pública.

Tornou-se habitual adjetivar como cívico o vínculo das pessoas com um país. A história nos mostra os riscos dessa leitura: regimes autoritári­os reforçaram o civismo como sinônimo de sentimento patriótico. Na atualidade, ativar a ideia de patriotism­o implica um anacronism­o e, por que não dizer, uma infantiliz­ação dos indivíduos, já que, não raro, exige postura subservien­te, minimizand­o a possibilid­ade de crítica.

Já o conceito de cultura, em seu sentido ampliado, demanda que eventos culturais tenham tratamento especial da legislação, pois se relacionam com a dimensão simbólica do ser humano. Como gestor da cultura que trabalha pela democratiz­ação de seu acesso, posso afirmar que há um componente educativo nas manifestaç­ões culturais que complement­a a educação formal.

Eventos de caráter cultural merecem regime especial de tributação, pois não devem estar à mercê de bloqueios arbitrário­s e inconseque­ntes feitos à educação cidadã.

O incentivo à presença de obras vindas do exterior em ações culturais condiz com políticas democrátic­as interativa­s. Em nome delas devem convergir esforços de grupos que têm como pressupost­o a igualdade entre as pessoas e como horizonte a liberdade de mentes e corpos.

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Daniel Bueno

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