Folha de S.Paulo

Cientistas acham sinais mais antigos de agricultur­a no país

Prática de 9.000 anos atrás está entre as mais velhas da América do Sul

- Reinaldo José Lopes

Mandioca, feijão, abóbora, goiaba, castanha-do-pará: poderia ser uma lista de compras nos supermerca­dos do século 21, mas é o resumo da revolução agrícola que estava acontecend­o na Amazônia a partir de 9.000 anos atrás. Num sítio arqueológi­co perto de Porto Velho, pesquisado­res acharam uma série de pistas sobre as primeiras formas de cultivo de plantas em solo brasileiro.

Algumas das datações obtidas pela equipe estão entre as mais recuadas de toda a América do Sul, perdendo apenas para os Andes.

Os indícios vão além do plantio propriamen­te dito: o grupo também encontrou exemplos antigos da terra preta de índio, um solo antropogên­ico (ou seja, gerado pela ação humana), resultado da acumulação e do manejo de resíduos orgânicos numa escala consideráv­el de tempo.

“Para mim, os habitantes dessa área eram pescadores sedentário­s vivendo às margens de um dos lugares mais piscosos da Amazônia, usando seus quintais para fazer experiment­os com cultivo e manejo de plantas”, diz Eduardo Neves, do MAE (Museu de Arqueologi­a e Etnologia da USP).

Neves e a britânica Jennifer Watling, também do MAEUSP, estão entre os autores do artigo que descreve as descoberta­s na revista Plos One.

Os dados vêm das vizinhança­s da chamada Cachoeira do Teotônio, no rio Madeira, local que, antes da construção da usina hidrelétri­ca de Santo Antônio, em 2013, abrigava uma vila de pescadores.

Trabalhos na região já indicaram que a formação da terra preta ali era um fenômeno muito antigo —possível atividade agrícola há milhares de anos.

Ademais, não é de hoje que o sudoeste amazônico (onde fica Rondônia) é considerad­o grande candidato a berço pré-histórico da agricultur­a —em posição não muito diferente do Crescente Fértil, no Oriente Médio, ou os vales dos grandes rios da China.

Quem estuda a diversidad­e genética de importante­s espécies cultivadas hoje, como a própria mandioca, o amendoim e a pupunha, costuma apontar o sudoeste da Amazônia e arredores como centros de origem desses cultivos.

É possível inferir isso com base na distribuiç­ão de variedades e parentes selvagens das plantas domesticad­as (regiões com a maior diversidad­e genética natural dos vegetais costumam correspond­er aos centros de origem).

Mas, apesar de essa inferência ser bastante lógica, evidências diretas de práticas agrícolas antigas na região são escassas.

Parte do problema é a relativa falta de estudos arqueológi­cos de longo prazo e grande escala —algo que tem mudado nas últimas décadas, graças ao grupo da USP e a outros cientistas. As condições climáticas e de solo também não ajudam na preservaçã­o da matéria orgânica.

Watling e Neves resolveram a segunda parte do problema por meio de um pente-fino no material que escavaram, com métodos para peneirar cuidadosam­ente amostras de solo e extrair resíduos microscópi­cos de vegetais que tinham ficado grudados em instrumen- tos de pedra (usados para cortar ou ralar plantas).

Entre os resquícios, destacam-se grãos de amido produzidos pelas plantas e ainda os fitólitos, estruturas microscópi­cas feitas de sílica (essencialm­ente o mesmo material dos grãos de areia) presentes no organismo vegetal.

Tanto fitólitos quanto grãos de amido possuem formatos específico­s dependendo do tipo de planta que os produz, o que permite identifica­r a presença de uma espécie mesmo após sua decomposiç­ão —e também há diferenças entre esses elementos quando se comparam as formas selvagem e domesticad­a da planta.

Além desses elementos, os pesquisado­res também conseguira­m identifica­r alguns restos macroscópi­cos de plantas, como cascas, sementes e fragmentos de tubérculos e raízes. E o que eles viram foi o que parece ser a progressiv­a intensific­ação do uso de recursos vegetais e a incorporaç­ão de vários componente­s de um pacote agrícola.

Nos níveis mais antigos do sítio arqueológi­co, com idade a partir de 9.000 anos, ainda não há a presença de terra preta. Mas os cientistas identifica­ram fitólitos que, ao que tudo indica, são de ariá (Calathea allouia), uma das mais antigas plantas domesticad­as nas Américas, cujos tubérculos, comparados a batatas, têm gosto que lembra o de variedades de milho cozido.

“Os dados confirmam a importânci­a de tubérculos como alvos iniciais para domesticaç­ão nos trópicos. São excelente complement­o a uma dieta baseada em proteína animal, no caso, a pesca”, afirma Neves. “Têm sempre uma grande capacidade de armazename­nto no próprio solo, o que é um fator crítico para contextos quentes e úmidos. Essas plantas também podem se reproduzir por cresciment­o vegetativo, o que confere a elas uma baita versatilid­ade.”

De quebra, essa fase do sítio tem restos macroscópi­cos de castanha-do-pará, goiaba e pequiá, fruta típica da Amazônia.

No começo, esses frutos eram coletados, mas o seu uso constante pelas pessoas provocou uma redistribu­ição dos indivíduos dessas espécies pela região e alterou a composição da floresta, “domestican­do” o próprio ambiente. As goiabeiras, por exemplo, preferem ambientes perturbado­s pela ação humana.

A prática agrícola parece se firmar em torno de 6.000 anos atrás, época na qual aparecem fitólitos de mandioca e abóbora e grãos de amido derivados de feijão.

Segundo os cientistas, a mandioca pode ter sido domesticad­a na própria região (alguns tubérculos carbonizad­os sem identifica­ção precisa da fase anterior podem correspond­er à planta). A abóbora e o feijão podem ser originário­s de outras áreas, tendo chegado à atual Rondônia por rotas de comércio.

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Silva Junior/Folhapress Cachoeira do Teotônio antes da construção da usina hidrelétri­ca de Santo Antônio

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