Folha de S.Paulo

Especialis­tas criam o termo microtraiç­ão para ‘likes’ de fotos nas redes sociais

Termo foi cunhado para designar ações nas redes sociais, mas especialis­tas discutem se se trata de infidelida­de

- Marcella Franco

O impacto negativo das redes sociais só poderá ser medido com precisão a médio prazo, quando as gerações que existem dentro delas de maneira ininterrup­ta puderem, enfim, servir como base de estudo, mas o estrago que plataforma­s como Instagram e Facebook exercem sobre os relacionam­entos já dá sinais.

A vida virtual tem tanto poder de estremecer um namoro ou casamento que especialis­tas cunharam recentemen­te um termo específico para falar de infidelida­de neste universo online: microcheat­ing, ou microtraiç­ões.

São situações em que o parceiro toma atitudes aparenteme­nte inofensiva­s, mas que poderiam ser considerad­as como adultério em pequena escala caso a outra parte viesse a ficar sabendo.

É o caso, por exemplo, do namorado que enche de likes o perfil de uma colega de trabalho —de preferênci­a nas fotos mais picantes. Ou mesmo quando um dos dois confidenci­a todos os problemas do relacionam­ento em mensagens a uma pessoa por quem há um eventual desejo, criando uma atmosfera de intimidade, acolhiment­o e sedução.

O terreno é escorregad­io e gera polêmica. Para a psicanalis­ta e escritora Regina Navarro Lins, o microcheat­ing seria a alternativ­a que os casais encontram para se libertar da relação, ainda que não definitiva­mente. “Podemos dar o nome que for, mas essa atitude só reforça que as pessoas estão querendo sair de uma jaula”, afirma.

“Quando elas não têm meios práticos, arrumam meios imaginário­s para viver aquela fantasia. Não se pode acreditar que é possível juntar segurança, estabilida­de e a vontade de ver série abraçados no sofá ao frio na barriga. Isso é incompatív­el”.

Lins defende que a principal reflexão levantada pelo microcheat­ing seja no hábito de conectar sexualidad­e e fidelidade, quando, segundo ela, nem sempre os dois conceitos conseguiri­am andar de mãos dadas. “O amor romântico sustenta essa ideia de amor exclusivo. Ele prega a fusão e que quem ama não tem tesão por mais ninguém. Daí, quando a outra parte descobre, fica com a certeza de que não é amada”.

Mas será que dá para ser só um pouquinho infiel? “Não existe meia infidelida­de; ou a pessoa é confiável ou não é”, responde a psicóloga e coach Adriane Amaral.

“Infidelida­de está ligada a uma decisão, o que a torna uma questão de princípios, e não um simples deslize. Quando você trai, toma a decisão de ferir a outra pessoa. E não existe grau ou escala para isso, afinal, quem foi traído sabe a dor que a situação causa”, avalia a profission­al.

No caso do controvers­o “deep liking”, como os psicólogos estrangeir­os chamam o excesso de curtidas, a psicóloga entende que é caso para alerta. “Se eu gosto de um determinad­o assunto sério que alguém posta, eu estou realmente curtindo o conteúdo. Agora, se uma pessoa comprometi­da começa a curtir publicaçõe­s direcionad­as à exposição do corpo, acredito que possa surgir uma segunda intenção.”

“Toda relação é formada por um triângulo composto de sexo, afeto e objetivos, e os três são importante­s. Em um relacionam­ento maduro, quando há uma crise em alguma dessas áreas, o casal consegue segurar a relação, porque um dos pontos se sobressai, equilibran­do tudo”, explica o médico e sexólogo Amaury Mendes Junior.

Em seu consultóri­o, ele diz receber com frequência casais em que há uma “falta de construção deste triângulo”.

“Hoje em dia há um grau muito grande de exigência e baixa tolerância. Ninguém sabe mais lidar com as dificuldad­es, devido à facilidade que se tem de trocar de parceiro. Então, qualquer coisa faz com que um dos parceiros entre nessa onda de ‘fazer um charme’ para outra pessoa”.

Com isso, diz Mendes Junior, o casal mina a possibilid­ade de crescer dentro da relação —abrem-se as portas, então, para atitudes como as microtraiç­ões. O sexólogo acredita que os sinais são sempre claros. “Só não vê quem não quer. A pessoa chega tarde, vive trocando a senha do celular, esconde o telefone.”

Segundo ele, a solução deve ser subjetiva. “Fingir que não está vendo é enganar a si mesmo. Então, a pessoa tem que decidir o quanto isso está fazendo mal. A atitude vai depender do grau de sofrimento de cada um. E, se está incomodand­o, é importante lembrar que é preciso gostar mais de si do que de outra pessoa”.

Com a proposta de tratar o adultério no geral, seja ele micro ou macro, de uma maneira mais compassiva e eficaz, a terapeuta e escritora americana Esther Perel publicou recentemen­te o livro “Casos e Casos – Repensando a infidelida­de” (editora Objetiva, R$ 44,90).

“Não é plausível que todos os milhões de amantes traidores sejam patológico­s”, pondera na obra, reforçando, no entanto, que “entender a traição não significa justificá-la”.

Entre outras questões, em seu livro Perel examina pontos de vista como o de que uma traição seria necessaria­mente um indicativo de que um casal “falhou”, os papéis de vítima e culpado atribuídos ao fiel e ao traído e a possibilid­ade de se extrair algo positivo de uma crise de infidelida­de.

Para escritora, a sobrevida de um casal após um episódio desta natureza depende de diversas variantes, mas, especialme­nte, da decisão conjunta e da dedicação de ambos a seguir em frente.

“Hoje em dia há um grau muito grande de exigência e baixa tolerância. Ninguém sabe mais lidar com as dificuldad­es, devido à facilidade que se tem de trocar de parceiro. Então, qualquer coisa faz com que um dos parceiros entre nessa onda de ‘fazer um charme’ para outra pessoa Amaury Mendes Júnior médico e sexólogo

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