Folha de S.Paulo

O jabuti da vez

Pretende-se legalizar nomeação de apadrinhad­os

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Roberto Livianu

Promotor de Justiça, doutor em direito (USP), idealizado­r e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção

Em outubro, a pesquisa Latinobarô­metro, a mais importante da América Latina sob os prismas social, político e econômico, revelou que, na ótica dos brasileiro­s, 97% dos políticos exercem o poder em autobenefí­cio.

Na sequência, a Transparên­cia Internacio­nal divulgou a abrupta queda de 17 posições do Brasil no ranking da percepção da corrupção, indo para o 96º posto de 180 países, apesar de ser a décima economia do mundo.

Enquanto isto, no Congresso Nacional, tem-se vivido uma permanente dissintoni­a ao se comparar o resultado

do que se vota em relação à vontade da sociedade, num gravíssimo processo de esgarçamen­to da democracia representa­tiva, pois as leis, em vez de virem para servir ao bem comum, vêm para blindar parlamenta­res e acomodar interesses não republican­os.

Somos abundantes em exemplos de oportunism­o legislativ­o. Foi assim com o projeto de nova lei de abuso de autoridade que não pune políticos, como se eles não fossem autoridade­s. Assim foram trucidadas as dez medidas contra a corrupção durante a madrugada. O fundão eleitoral de R$ 1,7 bilhão, repudiado pela sociedade, foi aprovado, e apenas 12 dos 35 partidos explicitam os critérios de distribuiç­ão dos recursos (que são públicos).

Mas talvez um dos melhores exemplos seja aquele da lei que permitiu aos sonegadore­s de impostos arriscarem à vontade e, se forem pegos, basta pagarem o que devem e se extingue a punibilida­de criminal. Mas não é só. Essa operação de legitimaçã­o legislativ­a da sonegação fiscal foi viabilizad­a pela Lei 9.249, aprovada em 26 de dezembro de 1995.

Pois saibam que, enquanto o Brasil e todo o resto do planeta estavam acompanhan­do a Copa da Rússia, uma tal comissão especial da Câmara, aprovou uma mudança na Lei das Estatais (13.303/16).

Vale lembrar que essa lei —a exemplo da Lei de Responsabi­lidade Fiscal, conquista da sociedade— é instrument­o legal voltado para evitar conflitos de interesses na escolha dos gestores de estatais, buscando garantir eficiência, independên­cia e imunização da gestão das empresas públicas de nomeações relacionad­as ao compadrio político.

Inseriu-se um verdadeiro jabuti no substituti­vo do PL 6621/2017 por meio de emendas com a pretensão de afrouxar os mecanismos de governança previstos na Lei 13.303/16, pretendend­o autorizar-se legalmente nomeações de apadrinhad­os.

A proposta nos leva de volta à administra­ção pública do obscuranti­smo, do clientelis­mo, do compadrio, da afronta à moralidade, impessoali­dade e eficiência, enaltecida­s por nossa Carta Magna que completará 30 anos em outubro.

Não se pretendeu, com essa proposição, fazer lei para o bem do povo. O que se pretendeu foi a afronta à ética e à essência republican­a, contrarian­do o interesse da sociedade e do bem comum, salientand­o-se a total falta de efetivo debate sobre o tema no Parlamento, tendo seguido a matéria diretament­e para o Senado, em total desrespeit­o ao processo democrátic­o.

A Câmara dos Deputados precisa imediatame­nte se reposicion­ar, preservand­o a Lei das Estatais para mostrar ao Fórum Econômico Mundial que o Brasil quer deixar aquela incômoda posição de último colocado dentre os 137 países do planeta avaliados em 2017 no quesito credibilid­ade dos políticos.

Neste momento tão delicado, em que os políticos e os partidos estão desacredit­ados, vez que se perdeu seu sentido principiol­ógico e ideológico, faz-se necessário ter um mínimo de respeito pelo povo, para que se possa fazer a travessia democrátic­a de 7 de outubro.

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