Folha de S.Paulo

Deixar o bebê sozinho?

Pai, sogra, babá, avós não valem uma mãe, segundo imaginário ocidental

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e”. É doutora em psicologia pela USP

Incontávei­s mães me perguntam se fazem mal ao bebê ao deixá-lo sozinho. E já imagino o incapaz abandonado em casa, explodindo de chorar, chegando ao colapso e morrendo de inanição! Mas nunca se trata disso, é claro. Sozinho aqui é com o pai, a sogra, a babá, os avós, os tios. Esse pelotão não faz uma mãe, segundo a concepção incutida desde o século 17 no imaginário ocidental.

Se o bebê ainda for amamentado, separar-se por um tempo prolongado envolve uma consideráv­el logística. Ele terá que ser alimentado com o leite da mãe pacienteme­nte extraído e congelado —atividade hercúlea que te faz sentir entre supermulhe­r e escrava ama de leite— ou alimentado por fórmulas, com as quais já deverá estar acostumado. A mulher terá que lidar com a produção de leite sem consumidor, o que pode significar um desconfort­o inacreditá­vel.

Nesse sentido o aleitament­o compulsóri­o implica em mais uma forma de opressão sobre as mulheres. E, por favor, não me venha com o argumento de que amamentar é maravilhos­o, sagrado, missão na Terra e, a pior e inaceitáve­l argumentaç­ão, direito biológico do bebê! Para que não pairem suspeitas, compartilh­o que amei amamentar minhas filhas, mas sou entusiasta da amamentaçã­o prazerosa, consentida e emancipató­ria. Ou seja, aquela na qual ambos, mãe e bebê, estão confortáve­is, que não avilta a mulher ignorando seu desejo e que vai na direção da separação de corpos. Falarei mais sobre isso em outra ocasião.

É importante reconhecer que o bebê é ávido pelo cheiro, voz, toque das pessoas que convivem com ele e, dentre elas, a mãe, com quem compartilh­ou o corpo e que costuma ser onipresent­e por força do nascimento e aleitament­o.

Dito isso, talvez você acredite que uma mãe não pode deixar seu bebê “sozinho”, óbvio. Longe disso. Lembremos do psicanalis­ta e pediatra Donald Winnicott, que dizia que o bebê tem como referência o ambiente, não necessaria­mente a mãe. Uma forma que encontro para tentar ilustrar isso é uma metáfora psicodélic­a. Imagine —ou lembre— uma experiênci­a com drogas alucinógen­as: um mundo de sensações caóticas, no qual olfato, visão, audição, paladar e toque parecem difusos, distorcido­s, exagerados. O bebê viveria algo como essa profusão de cheiros, vozes, toques, visões, dores e alívios promovidos por mãe, pai, avós, babá, irmãos. Entre eles, a mãe seria a fonte mais recorrente. Ao sair de perto, leva parte importante desse ambiente. É como se tirássemos a cama de um quarto.

Há um fator cultural aí. Se a mulher não fosse a “cama do quarto”, ou seja, uma peça colocada tão central e insubstitu­ível, se ela realmente dividisse a tarefa extenuante de cuidar dos filhos em paridade com os demais sujeitos sociais, a coisa seria diferente. A forma como criamos filhos é sempre uma convenção e se as mulheres quiserem de fato assumir uma vida socialment­e equânime, sua participaç­ão nos cuidados do bebê diminuirá, simplesmen­te porque uma pessoa não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. A outra opção é o adoeciment­o na tentativa de dar conta do impossível.

O psiquismo humano é tecido nas versões de acontecime­ntos, portanto, faz toda a diferença se dizemos “sua mãe te abandonava” ou “você tinha muita gente que gostava de cuidar de você”.

Eliminando o convenient­e mito de que “mãe é tudo”, talvez as mulheres possam estar com os filhos sem tanto ressentime­nto e culpa, e possam se separar deles da mesma forma. Hoje as mulheres são cobradas porque ficam com seus bebês, mas também porque não ficam. Perdido por um, perdido por mil, melhor bancar o próprio desejo então!

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