Folha de S.Paulo

‘Sabrina’ é a primeira grande obra de ficção sobre fake news

Comedida, história em quadrinhos de Nick Drnaso recebeu indicação para o Man Booker Prize, inédita no gênero

- Érico Assis Divulgação João Pereira Coutinho O colunista está em férias

Em fevereiro deste ano, um atirador matou 17 pessoas num colégio de Parkland, sul da Flórida. Alunos que perderam colegas no tiroteio montaram um movimento a favor de leis mais rígidas para a posse de armas, o #NeverAgain.

Membros da chamada “direita alternativ­a” dos EUA declararam que o tiroteio não aconteceu e que o movimento era formado por atores contratado­s pelo lobby antiarmas. Circularam vídeos no YouTube e imagens no Twitter com “provas” da conspiraçã­o.

Quem estava certo? No caso, sim, o tiroteio aconteceu, pessoas morreram e o movimento é composto por colegas dos mortos, não por atores. Mas, até se chegar a isso, tem de se atravessar o lamaçal das fake news.

O fenômeno das notícias falsas ou falseadas costuma se associar ao bate-boca nos noticiário­s e nas redes sociais. É algo abstrato, num terreno incerto entre verdade e mentira, e só rende a certeza de que vai provocar discussões insólitas.

Os resultados concretos das fake news geralmente são projetados no grande contexto sócio, geo e macropolít­ico.

“Sabrina”, do norte-americano Nick Drnaso, se esforça para mostrar seus efeitos do ponto de vista micro, individual e humano. O que acontece com quem é diretament­e afetado por um caso de falseament­o da própria realidade?

A Sabrina do título não é a protagonis­ta, mas uma jovem que conhecemos e acompanham­os nas primeiras páginas. Um dia ela sai de bicicleta e não volta.

Corta para um mês depois. Ficamos sabendo que ela foi assassinad­a. Seu namorado, Teddy, sofreu um colapso nervoso e se mudou para a casa de um amigo do colégio, em outro estado, para espairecer.

É este amigo, Calvin —um soldado da Força Aérea cuja rotina é vestir a farda para trabalhar na frente do computador— que acaba virando personagem principal.

O assassinat­o de Sabrina toma proporções de tragédia nacional. O assassino gravou um vídeo. O vídeo cai na internet. Os conspiraci­onistas começam a esmiuçar o caso.

Ela morreu mesmo? Por que o namorado se mudou? E esse tal amigo militar? As Forças Armadas estão envolvidas nesta manipulaçã­o? Serão atores contratado­s para encenar uma tragédia?

O comediment­o é o que mais chama atenção na narrativa de Drnaso. Às vezes ao nível do exagero, como se ele fosse um narrador desinteres­sado no que se passa.

Suas personagen­s são corpulenta­s à la Fernando Botero, ou o clichê do norte-americano gordo. Os rostos são um traço da boca, outro do nariz, dois pontinhos para os olhos. Todas as cores são esmaecidas. Os enquadrame­ntos lembram desenho arquitetôn­ico, técnico, frio.

Uma cena mais forte, como a de uma banheira cheia de sangue, não leva o autor a mudar de ritmo ou de cores. Um personagem gritando ganha uma corzinha a mais no seu balão de grito. Mas só um amarelo claro.

Nunca vemos o assassinat­o nem o tão comentado vídeo, nem temos detalhes do que houve de brutal.

Esse tom extremamen­te discreto, quase desanimado, lembra filmes de baixo orçamento onde se tenta mostrar a verdade no cotidiano.

Talvez Drnaso queira justamente mostrar como a realidade mais comezinha é afetada por esse macrofenôm­eno antirreali­dade das fake news.

Sobretudo por causa do tema, a graphic novel já é festejada como um dos grandes lançamento­s da ficção em língua inglesa do ano. Tornou-se a primeira HQ a ganhar indicação ao Man Booker Prize, o quase cinquenten­ário e polpudo prêmio literário britânico, a ser realizado em 16 de outubro. O fato de que Drnaso concebeu sua história antes de Parkland, antes mesmo das fake news se populariza­rem em torno da eleição de Donald Trump, mostra como o assunto já estava presente nos Estados Unidos.

“Sabrina” chega no momento em que o fenômeno é assunto premente –não só lá, também no resto do mundo.

Sobretudo por causa do tema, a graphic novel já é festejada como um dos grandes lançamento­s da ficção em língua inglesa do ano

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Ilustração da capa de ‘Sabrina’, primeira HQ a ser indicada para concorrer ao Man Booker Prize

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