Folha de S.Paulo

‘Quando Ela Era Boa’, de Roth, é como meditação sobre o destino e a virtude

- Bob Peterson/Time Life Pictures/Getty Images João Pereira Coutinho

Sempre gostei de “Quando ela era boa”, um romance subvaloriz­ado de Philip Roth, publicado em 1967.

Corrijo: o romance não foi subvaloriz­ado. Foi sobrevalor­izado, mas pelas razões erradas: depois de se ter divorciado da primeira mulher, Margaret Martinson, a crítica entendia que o livro era um ato de vingança de Roth sobre a ex-mulher. Ali estava um caso de “masculinid­ade tóxica”, como agora se diz, com personagen­s femininas condenadas às maiores torpezas.

Não vou perder tempo com essas interpreta­ções, que me parecem superficia­is (para usar um eufemismo). Prefiro olhar para “Quando Ela Era Boa” como uma meditação sobre o destino e a virtude, dois temas clássicos de Philip Roth.

No centro da história estão Willard Carroll e a neta Lucy. Ambos pretendem fugir aos exemplos familiares, construind­o um universo a salvo da selvajaria dos progenitor­es.

Willard é o primeiro: abandona Iron City, instala-se em Liberty Center (atenção ao simbolismo dos nomes) e decide que o mais importante na vida é ser uma pessoa “civilizada”. No fundo, Willard deseja ser o contrário do pai, um homem bruto e cruel. Como? Praticando e exibindo as virtudes certas da compreensã­o e da bondade.

Lucy parte da mesma premissa: igualmente brutalizad­a pelo exemplo do pai —um alcoólatra que bate na mulher submissa—, compromete-se com a verdade, só a verdade, nada mais que a verdade.

E, em matéria de relações amorosas, ela tem exigências sobre os homens que estão no oposto da subjugação da mãe.

Fatalmente, e como acontece na prosa trágica de Philip Roth, esses dois caminhos de virtude convertem-se em caminhos de destruição.

À primeira vista, que mal tem a bondade de Willard? Mal nenhum. Exceto quando a bondade se converte em pusilanimi­dade —uma inépcia para reagir vigorosame­nte quando está em causa algo de essencial: o bem estar da sua família. É por isso que o homem que deixou Iron City para encontrar a liberdade na cidade desse nome (Liberty Center) está condenado a nunca sair do inferno.

O mesmo acontece com Lucy. Admiramos a sua força de caráter. E pasmamos com os seus sacrifício­s em nome do bem: só Lucy seria capaz de se casar com Roy, mesmo não gostando dele, para evitar o naufrágio do rapaz.

Mas há momentos em que a compaixão é autodestru­tiva. E em que a virtude se converte em fanatismo e intolerânc­ia perante as imperfeiçõ­es de terceiros.

Tal como o avô, Lucy não consegue escapar ao destino porque as suas virtudes se convertera­m nos piores vícios.

E, no fim, quem se salva da tragédia virtuosa?

Uma personagem, por sinal feminina: Berta, mulher de Willard e avó de Lucy. Ao longo do romance, por palavras ou atos, ela assume o papel do coro grego, comentando racionalme­nte os atos irracionai­s do marido e da neta. Berta não se ilude nem se deixa iludir pelas ficções dos outros.

Se ela representa a “masculinid­ade tóxica” de Roth, então o mundo seria um lugar melhor com um pouco mais de toxicidade.

Como acontece na prosa trágica de Philip Roth, os caminhos de virtude de Willard e da neta Lucy se convertem em caminhos de destruição

 ??  ?? Philip Roth em sua casa, em Syracuse (EUA), em 1968
Philip Roth em sua casa, em Syracuse (EUA), em 1968

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil