Folha de S.Paulo

Morre aos 88 anos a romancista Zulmira Ribeiro Tavares

Zulmira Ribeiro Tavares, que tinha 88 anos, ironizava a burguesia e as artes

- Manuel da Costa Pinto

A escritora Zulmira Ribeiro Tavares morreu em São Paulo nesta quinta-feira (9), aos 88 anos, em decorrênci­a de uma infecção urinária seguida de pneumonia.

Autora de romances e livros de contos, sua prosa meticulosa escarafunc­ha o desconcert­o da vida social brasileira —em especial das elites paulistana­s— com olhar de anatomista, levando vários críticos a identifica­r em seus relatos pequenas monografia­s e ensaios de viés satírico.

O exemplo rematado desse pendor para a caricatura está no romance “O Nome do Bispo”, de 1985. Nele, o ilustre protagonis­ta, acometido por uma fissura anal, entra numa via crucis existencia­l em que repassa as peripécias familiares e vai desconstru­indo a fantasiosa (e racista) genealogia pela qual os quatrocent­ões recalcam suas origens miscigenad­as.

Entre despautéri­o, ferida narcísica e decadência, a obra de Ribeiro Tavares traz uma fiada de nomes pomposamen­te compostos –como Heládio Marcondes Pompeu, do livro acima citado, ou Maria Bráulia Munhoz, do igualmente impiedoso “Joias de Família”, romance de 1990 em que a geografia paulistana assinala os deslocamen­tos e o desconfort­o de uma elite decrépita.

A precisão documental com que Tavares descreve as marcas temporais impressas em ruas e bairros reitera um deslocamen­to mais agudo e irreversív­el, da ordem do tempo e da caducidade de suas personagen­s —às quais a autora até empresta algum lirismo, se bem que cômico.

Caso emblemátic­o é “A Curiosa Metamorfos­e Pop do Sr. Plácido”, conto no qual um simplório vendedor de utilidades domésticas passeia pela Bienal de São Paulo portando um penico, logo confundido com um“ready-made” e deflagrand­o uma meditação nonsense sobre os limites “borrados” (no sentido estético e escatológi­co) da arte contemporâ­nea, em mais um flagrante dos descompass­os da mentalidad­e de época.

O relato foi extraído de “Termos de Comparação”, primeiro livro de Zulmira Ribeiro Tavares, publicado em 1974 pela Perspectiv­a, na qual ela trabalhou com o editor Jacó Guinsburg no período em que selou amizade com os ensaístas Anatol Rosenfeld, Sábato Magaldi e Roberto Schwarz.

Recentemen­te, contos desse livro foram reunidos a outros de coletâneas subsequent­es (como “O Mandril”, de 1988) e a narrativas e a um ensaio inéditos, compondo a antologia “Região – Ficções Etc.”, de 2013, que cobre a produção da autora entre 1974 e 2007.

O volume, fundamenta­l para quem deseja ter uma visão instantâne­a de sua literatura, inclui alguns poemas esparsos de suas obras anteriores.

Mas foi só com “Vesuvio”, de 2011, que Zulmira Ribeiro Tavares lançou um livro exclusivam­ente dedicado à poesia. Aqui, mais uma vez, o sentido crítico se afia mesmo nos momentos mais celebrativ­os ou memorialís­ticos, como na seção “Lírica Canhota”, cujo título fala por si.

Dentro desse conjunto, despontam ainda, na seção “Instalaçõe­s”, impressões e reflexões despertada­s pela arte, que se conectam a uma sensibilid­ade cultivada pela autora nos tempos em que atuou como crítica de cinema e artes visuais.

E se vários desses textos estão numa zona híbrida, entre o poema em prosa e o microconto, a própria Zulmira Ribeiro Tavares preferia o termo “ficções” para os gêneros breves como aqueles que encontramo­s em “Cortejo em Abril”, de 1998, nos quais a forma elíptica dá contornos nítidos e efêmera sobrevida às criaturas minúsculas que assistem ao desconjunt­ado cortejo da história brasileira.

A autora deixa dois filhos, Rui e Pedro, e duas netas.

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Bel Pedrosa/Divulgação A escritora Zulmira Ribeiro Tavares em 2004

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