Folha de S.Paulo

Não Nicarágua, democracia e dupla moral

Vale tudo se algo não agrada às classes dominantes

- Breno Altman Jornalista e fundador do site Opera Mundi

A crise política nicaraguen­se já se estende por quatro meses. Manifestaç­ões, conflitos e violência ocupam o cenário desde que o presidente Daniel Ortega propôs uma reforma previdenci­ária desgostosa a empresário­s e trabalhado­res. Nem sequer a imediata retirada dessa medida foi capaz de levar à pacificaçã­o.

A onda opositora, nascida de reivindica­ção concreta, se transformo­u em movimento insurrecio­nal, cujo objetivo confesso é derrubar o governo. Os grupos que lideram essa escalada trancaram ruas, tomaram prédios públicos e armaram parte de seus apoiadores, respaldado­s tanto pelas frações mais conservado­ras da comunidade internacio­nal quanto por setores de esquerda.

Ainda que se compromete­ndo com a abertura de negociaçõe­s, Ortega reagiu contra a desestabil­ização. Não convocou o Exército, mas recorreu à ação policial. A militância sandinista se lançou no enfrentame­nto às forças adversária­s, utilizando-se dos mesmos recursos empregados pelas patotas insurgente­s.

Os protestos aparenteme­nte declinaram, mas deixaram um rastro de sangue. A oposição fala em mais de 400 mortes. O governo reconhece metade desses óbitos, que incluem três dezenas de policiais e muitos ativistas das fileiras governista­s.

No entanto, a conclusão serpentean­do pelo mundo, impulsiona­da por meios de comunicaçã­o que jamais tiveram problemas para apoiar golpes e ditaduras, aponta para a falência da democracia na Nicarágua.

Acusa-se Daniel Ortega por afrontar o levante em curso. Mas não foi isso que fez o governo espanhol, de forma mais comedida, contra os independen­tistas catalães, cujos líderes foram presos e banidos? Quantos dos críticos do sandinismo chamaram de ditador o então primeiro-ministro Mariano Rajoy?

O presidente da Nicarágua liderou uma revolução em 1979 e se retirou quando perdeu as eleições de 1990. Retornou pelo voto, no pleito de 2006, se reelegendo em 2011 e 2016, dessa última vez com mais de 70% dos votos.

Seu partido tem ampla maioria parlamenta­r, mas outras sete agremiaçõe­s também possuem representa­ntes na Assembleia Nacional.

Nos Estados Unidos, por outro lado, Donald Trump virou presidente com uma votação popular inferior à de sua concorrent­e, e o sistema legislativ­o norte-americano é um duopólio há décadas. Por que, então, o sandinismo teria se convertido em ditadura e a Casa Branca seria o templo da democracia?

Também acusa-se o dirigente nicaraguen­se pela aprovação da reeleição indefinida. O fato é que a personaliz­ação do poder afeta até os regimes parlamenta­ristas. E nem por isso escuta-se a alemã Angela Merkel, há 13 anos no comando, ser chamada de ditadora.

Atento à história golpista das elites latino-americanas, Ortega luta pela hegemonia em todas as instituiçõ­es, incluindo o Poder Judiciário. Novamente, não é muito diferente do que ocorre nos EUA. Nem em Israel, onde leis recentes impuseram regras teocrática­s e racistas para garantir o predomínio sionista. Quantos qualificam de ditadura o regime de Netanyahu?

Não há dúvidas de que Daniel Ortega cometeu erros gravíssimo­s, incluindo amplas concessões aos que hoje tentam tombá-lo, a muitos desapontan­do. Mas etiquetar seu governo como ditadura, para além de conflitar com a realidade, representa dupla moral a serviço de interesses seculares.

Vale tudo, para as classes dominantes deste continente, quando se trata de combater até experiênci­as políticas parcialmen­te fora do controle de suas mãos peludas.

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