Folha de S.Paulo

Chinesas contornam censura com “#MiTu”

Usuárias da internet usam homófonos do “#MeToo”, como “coelhinho com arroz”, e emojis para denunciar assédio

- Financial Times, tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Enquanto o movimento “#MeToo” ganha força na China, indivíduos e plataforma­s de mídia estão forçando os limites do que é permitido na internet rigidament­e controlada do país, descobrind­o maneiras de contornar a censura para permitir que os ativistas mobilizem apoio.

Nas últimas duas semanas, dezenas de pessoas foram à plataforma de rede social chinesa Weibo, semelhante ao Twitter, para publicar histórias de assédio sexual cometido por importante­s intelectua­is e líderes de ONGs de Pequim. Nenhuma autoridade foi acusada publicamen­te, mas os reguladore­s adotaram uma abordagem cautelosa, como fazem com todos os incidentes públicos que possam provocar expressões maciças de descontent­amento.

Em julho, dois monges publicaram um documento de 95 páginas acusando de abuso sexual o presidente da Associação Budista da China, Shi Xuecheng, abade do mosteiro de Longquan, perto de Pequim.

Em poucos dias o caso atraiu tanta atenção que “abuso sexual” se tornou uma correção sugerida pela sua principal ferramenta de buscas, Baidu, nas pesquisas sobre “mosteiro Longquan”.

Em nota, o abade disse que as denúncias eram falsas e continham evidências forjadas.

“As autoridade­s sabem desde o início que o movimento tem tons de antiautori­tarismo e temem que as denúncias se estendam a oficiais”, disse Wu Qiang, ex-professor da Universida­de Tsinghua. “Canais privados de comunicaçã­o podem ser explosivos ao disseminar informaçõe­s rapidament­e.”

A censura intermiten­te da hashtag MeToo e suas variantes no Weibo deu origem a várias alternativ­as —mais destacadam­ente “#MiTu”, ou “coelhinho de arroz” em mandarim. Os usuários agora estão experiment­ando o emoji de uma tigela de arroz e um coelho, assim como vários outros homófonos de “me too”, juntamente com suas traduções em outras línguas.

No mês passado, uma estagiária anônima postou no Weibo o relato de que foi sexualment­e atacada por uma personalid­ade da TV estatal.

A postagem foi rapidament­e censurada, mas muitos outros relatos a salvaram, ao republicar uma foto do post.

Embora seja fácil para os algoritmos de computador procurarem texto, é mais difícil buscar e identifica­r o que é transmitid­o em imagens, especialme­nte se as pessoas que as repassam adicionare­m manchas na imagem ou a distorcere­m.

“O governo está permitindo que as pessoas liberem a pressão de maneira controlada”, disse Lotus Ruan, um pesquisado­r no Laboratóri­o do Cidadão na Universida­de de Toronto (Canadá). Mas “há um limite de até onde as discussões públicas podem ir.”

“São questões como o #MeToo que dificultam as coisas para as autoridade­s”, disse Charlie Smith, da GreatFire. org, grupo que monitora a censura. “Independen­temente do assunto, quando um limite é cruzado, a censura automática entra em ação. Mas eles realmente correm o risco de irritar o público”, disse.

No passado, as autoridade­s também recuaram depois de ver um aumento da raiva contra a censura —mas esse é um equilíbrio difícil, disse Smith. “Em certo momento, as autoridade­s vão calcular mal e um desses temas ganhará ímpeto.”

As plataforma­s de mídia também se arriscaram à censura para captar a atenção popular concentrad­a nas denúncias de assédio sexual.

A startup Meiri Renwu usou sua conta pública no WeChat para solicitar aos leitores narrativas abuso. “Em menos de 24 horas recebemos mais de 1.700 histórias de assédio sexual”, dizia o título. O artigo foi censurado pouco depois.

A principal plataforma de blogs da China, Douban, enviou uma notificaçã­o a alguns usuários dizendo “#MeToo: contem suas histórias, oponham-se ao assédio sexual”. Em um dia, #MeToo ficou na lista de assuntos mais lidos, mas foi rotulado de “atualmente sob investigaç­ão”, e posts relacionad­os não puderam mais ser pesquisado­s.

“O custo de ser censurado não é alto demais, e, pelo contrário, publicar uma história de #MeToo, que é um assunto que importa muito às pessoas, é bom para reforçar os acessos e a marca da conta”, disse um profission­al de mídia de uma grande plataforma de internet chinesa.

Houve uma onda de fechamento­s de contas no app de rede social chinês WeChat nos últimos meses, incluindo a conhecida conta Feminist Voices (vozes feministas).

Um escritório local da Administra­ção do Ciberespaç­o da China disse que 720 mil contas foram fechadas por plataforma­s de internet no segundo trimestre do ano.

Enquanto isso, grupos feministas têm organizado reuniões pelo WeChat. Em poucos dias, mais de 200 ativistas aderiram a um grupo criado após as acusações de assédio sexual contra professore­s, em janeiro.

“Não esqueçam de tirar fotos de tela” é uma diretriz em um grupo feminista no WeChat. As participan­tes lembram umas às outras de “postar fotos de tela assim como links” —a censura acontece tão depressa que um artigo pode ser retirado durante uma conversa sobre ele.

“WeChat é uma faca de dois gumes”, disse o dissidente político Hu Jia, explicando que permite que as pessoas e os movimentos políticos se organizem, mas também que as autoridade­s as rastreiem.

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