Folha de S.Paulo

A judicializ­ação do aborto

STF não deveria legislar, mas Congresso é conservado­r e obscuranti­sta

- Luís Francisco Carvalho Filho Advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desapareci­dos Políticos (2001-2004) lfcarvalho­filho@uol.com.br

A Argentina escolheu o caminho do processo legislativ­o. Depois de intensa mobilizaçã­o, a favor e contra, ruas tomadas por mulheres gritando “abajo el patriarcad­o”, o Senado sepultou o projeto de reforma legalizand­o o aborto até 14 semanas de gestação.

No Brasil, o tema está entregue ao Supremo Tribunal Federal. A Arguição de Descumprim­ento de Preceito Fundamenta­l (ADPF) 442, movida pelo PSOL, pede legalizaçã­o até a 12ª semana. Foram ouvidos em audiências públicas “especialis­tas” e “religiosos”.

Se a mudança pela via parlamenta­r parece distante —o Congresso é povoado por forças conservado­ras e obscuranti­stas—, no ativismo judicial, apesar de apreensões, vislumbra-se uma solução iluminista.

A rigor, ministros do STF não deveriam legislar.

O otimismo do movimento favorável à descrimina­lização decorre de precedente de 2017. A primeira turma do tribunal concedeu habeas corpus em favor de réus presos por explorar clínica clandestin­a. Afirmou que nenhum país democrátic­o e desenvolvi­do trata como crime a interrupçã­o da gestação no “primeiro trimestre”. Declarou inconstitu­cional a punição por violar direitos fundamenta­is da mulher.

Mas o STF é lento, e o desfecho incerto. O julgamento da ADPF 54, que declarou inconstitu­cional a interpreta­ção segundo a qual a “interrupçã­o da gravidez de feto anencéfalo” é conduta criminosa, aconteceu em 2012: oito anos de tramitação. Neste ritmo, o veredito da ADPF 442 se daria em 2025.

Aparenteme­nte, não há mulheres presas no Brasil por aborto. A pena não é alta (detenção de um a três anos) para os padrões atuais de encarceram­ento. Não é o que move a reforma. Porém, a submissão a interrogat­órios e a procedimen­tos periciais deixa marcas inaceitáve­is na mulher.

O problema é de saúde pública. O texto do Código Penal é o espantalho que afasta milhares de mulheres da rede hospitalar. Quanto mais pobre, mais agudo o sofrimento: falta de amparo psicológic­o, dor, mutilação, morte.

Não basta reescrever o Código Penal fixando prazo para a realização do aborto e esperar que tudo se ajuste. A implementa­ção do direito dependeria de regramento­s sobre idade, autorizaçã­o paterna, acesso ao SUS, planos de saúde, protocolos médicos, política de privacidad­e.

O movimento internacio­nal sobre aborto avança mas é marcado por recuos.

Se em maio a Irlanda aprovou a legalizaçã­o por referendo (66,4% dos votos), em agosto a Argentina perdeu a oportunida­de. Nos EUA, o direito à interrupçã­o da gravidez é assegurado pela Suprema Corte desde 1973, mas governos estaduais ainda criam embaraços para o seu exercício. No Brasil, evangélico­s querem mudar a Constituiç­ão para garantir a inviolabil­idade do direito à vida “desde a concepção” e inviabiliz­ar o aborto em caso de estupro e para salvar a vida da gestante, autorizado desde 1940.

Nos debates da ADPF 54 foi cunhada a expressão “faniquito anticleric­al” para a defesa da intervençã­o religiosa nos debates. Já o “faniquito clerical”, como o esdrúxulo e desonesto pronunciam­ento do papa Francisco, comparando aborto a nazismo, revela que igrejas, sem pagar impostos e conspirand­o contra a ciência, fazem de tudo para impor ao poder público suas doutrinas.

Em matéria de gravidez indesejada, não há aspectos recreativo­s. O aborto legal é essencial para a segurança médica de mulheres.

Padres e pastores, movidos pelo cinismo ou pela cegueira deliberada, recusam a causa feminista por preconceit­o e decadência moral.

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