Folha de S.Paulo

‘O Mundo Perdido’ é ótimo para pegar gosto pela leitura

Adultos não sisudos também vão gostar de obra de Conan Doyle situada na Amazônia

- Ivan Finotti

O Mundo Perdido

Arthur Conan Doyle. Trad. e posfácio: Samir Machado de Machado. Ed Todavia. R$ 49,90 (296 págs.)

A despeito do sucesso alcançado quando foi publicado, “O Mundo Perdido” realmente se perdeu na bibliograf­ia de sir Arthur Conan Doyle (1859-1930).

Pelo menos no Brasil, onde nada se lê, grande parte da população conhece Sherlock Holmes, mas quase ninguém ouviu falar desse livro que se passa aqui mesmo.

A história se desenrola na Amazônia, há cerca de cem anos, quando um grupo de aventureir­os londrinos vem descobrir dinossauro­s esquecidos num platô.

A viagem é boa parte da obra e os conflitos entre os personagen­s, alguns cômicos, dão o ritmo. Um jornalista na expedição narra a odisseia ao editor por cartas, enviadas à civilizaçã­o por índios. Ao final, todos participam de um genocídio entre índios e homens.

Nos EUA, “O Mundo Perdido” foi inspiração para a segunda parte de “Jurassic Park”, livro de Michael Crichton (1995) e filme de Steven Spielberg (1993), nos quais os americanos chegam a uma ilha em que dinossauro­s clonados vivem livremente.

O livro de 1912 não se passa numa ilha, e sim na nossa floresta tropical, inacessíve­l no século 21, imagine há cem anos. Começa assim: “Relato das maravilhos­as aventuras recentes do professor George E. Challenger, lorde John Roxton, professor Summerlee e do sr. E.D. Malone da Daily Gazette”.

Só por esse subtítulo dá para sacar duas coisas. Pelo estilo da escrita, parece que estamos diante de um livro juvenil. E estamos mesmo. Assim como a vasta bibliograf­ia de Sherlock, “O Mundo Perdido” é um livro ótimo para a garotada que está aprendendo a curtir literatura. Ou para adultos não sisudos, é claro, o que não há muito por aí.

Com a palavra, sir Arthur: “Minha ambição é a de fazer pelos livros para garotos o que Sherlock Holmes fez para as histórias de detetives”. É o que conta o tradutor Samir Machado de Machado no posfácio da edição da Todavia. Doyle teria dito isso ao seu editor, mas chegou tarde.

Júlio Verne já tinha se refestelad­o com esse público 50 anos antes —e manteve a coroa. “Viagem ao Centro da Terra” (1864), do francês, já era estrelado por animais pré-históricos. Por outro lado, Doyle parece ter originado uma onda. Edgar Rice Burroughs, criador de Tarzan, escreveria livros com dinossauro­s após ler “O Mundo Perdido”.

Outra coisa que o subtítulo faz gritar é como o romance é eurocentri­sta. Natural. Doyle era escocês e jamais veio ao Brasil. Certamente leu a capa do New York Herald de 1911: “Monstros pré-históricos na selva amazônica”, na qual um alemão dizia ter encontrado um bicho à prova de balas. Só com essa manchete já dava para desenvolve­r seu argumento.

Pediu ajuda a amigos que viajaram ao nosso país. Entrevisto­u o coronel Fawcett, que buscava a tal cidade de Z na Amazônia. E enviou o quarteto ficcional a Belém do Pará, após algumas aventuras e diatribes em Londres.

“Doyle era homem de seu tempo e, ainda que fosse abolicioni­sta e tenha promovido campanhas contra a exploração do trabalho escravo no Congo Belga, sua linguagem é fruto de sua época —bem como são os estereótip­os e noções raciais que por vezes surgem no texto”, escreve o tradutor. É algo justo de se explicar, para se prevenir daqueles que querem mudar o passado.

Eis algumas partes “daqueles”: “Mas já contratamo­s empregados. O primeiro é um preto gigantesco chamado Zambo, um Hércules negro solícito e inteligent­e como um cavalo.”

“Conversei com nosso mestiço bilíngue, Gomez —um sujeito trabalhado­r e dedicado, mas acometido, suponho, pelo vício da curiosidad­e, comum nesse tipo de homem. Na noite passada, ele parecia ter se escondido perto da barraca onde discutíamo­s nossos planos e, tendo sido avistado pelo imenso negro Zambo, que nos é fiel como um cão e tem o ódio que toda sua raça nutre pelos mestiços, foi arrastado e carregado até nossa presença.”

“Trinta ou quarenta morreram ali mesmo. Os outros, gritando e se debatendo, foram atirados ao precipício, em direção aos afiados bambus quase duzentos metros abaixo, como seus prisioneir­os haviam sido. O reino do homem estava para sempre garantido. Os homens-macacos machos foram exterminad­os. A Cidade dos Macacos foi destruída, as fêmeas e os jovens, levados para viver como escravos e a longa rivalidade de séculos incontávei­s chegara ao seu final.” Boa leitura.

Na história que inspirou ‘Jurassic Park’, aventureir­os vêm descobrir dinossauro­s esquecidos num platô

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Luc Fournol/Reprodução Hemingway no Ritz de Paris, em 1956

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