Folha de S.Paulo

Não penso que vim ao mundo para deixar um legado

Compositor estreia no fim do mês programa de entrevista­s e lança na próxima semana álbum de inéditas

- ENTREVISTA GILBERTO GIL Thales de Menezes

Na noite de quinta (9), Gilberto Gil recebeu amigos no Studio OM.art, charmoso espaço de exposições no Jockey Club do Rio.

Festa para duas novidades: a estreia, no próximo dia 21, do programa de entrevista­s Amigos, Sons e Palavras, atração na programaçã­o que comemora os 20 anos do Canal Brasil, e o lançamento do novo álbum de inéditas do compositor, “OK OK OK”, nas lojas e plataforma­s digitais no dia 17.

Na quinta, mais cedo, Gil deu depoimento por videoconfe­rência ao juiz Sergio Moro, no qual disse não saber de esquemas ilícitos no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, no qual foi ministro da Cultura entre 2003 e 2008.

Em entrevista à Folha ,o cantor, 76, falou do programa, do disco e de política, condenando “discursos que flertam com o obscuranti­smo”.

Sobre a investida na televisão, afirmou que fez conversas informais com cada convidado, uma lista de 11 personagen­s que vai do parceiro de mais de cinco décadas Caetano Veloso até o médico Roberto Kalil Filho, que tratou de Gil durante internaçõe­s em 2016.

Cada episódio é aberto com Gil cantando uma música, entre clássicas de seu repertório e outras do novo disco, produzido por seu filho Bem Gil.

O primeiro episódio de Amigos, Sons e palavras mostra você e Caetano falando de coisas íntimas, como ter filhos e envelhecer. Como vocês criaram a pauta das conversas?

Eu não sou repórter e nem tenho muito talento para isso. Quando eu fui chamado, fui logo dizendo que seriam conversas simples. Acho que essa era mesmo a expectativ­a das diretoras Letícia Muhana e Patrícia Guimarães.

Os convidados são pessoas com quem tenho diálogos próprios. E, no caso do Caetano, tem ainda o diálogo público, porque somos dois artistas conhecidos, com inserção na história da música brasileira.

Vocês fazem parte de uma primeira geração de músicos instigada a se posicionar em questões políticas, não?

Acho que numa geração anterior você teve intelec- tuais com esse papel de amplificad­ores e filtros no jogo das opiniões, mas eram em geral escritores, intelectua­is da palavra. Poucos músicos.

Eu, Caetano e Chico tivemos esse papel. Antes, os artistas de música eram do rádio, o que chegava deles era basicament­e só as canções, não as imagens, os discursos, as opiniões. Nós passamos a ter essa nova funcionali­dade justamente quando o Brasil entra na ditadura, a mobilizaçã­o nos vários campos de resistênci­a aparece, vários tipos de articulaçã­o, de intelectua­is, de estudantes.

Vivemos aquele tempo sob a força dessas exigências e tivemos de nos habituar a estar todo dia trabalhand­o com essa dimensão, além do nosso trabalho musical.

No programa, o que foi escolhido primeiro: o convidado ou um tema a ser debatido?

O convidado. Foram sugestões minhas aliadas a sugestões da produção, que submeteu a mim nomes e perfis. Então eu opinava sobre quem poderia render uma boa conversa, detectava quais as afinidades que iriam entrar num liquidific­ador de diálogos.

Às vezes você pensa no legado que vai deixar?

Não me ocorre muito essa questão. São 50 e tantos anos e 50 e tantos discos, tanta atuação dentro e fora do Brasil, contribuiç­ões na atividade de cidadania e na gestão pública. Mas não penso que vim ao mundo para deixar isso ou aquilo. Nem mesmo em relação aos filhos. Eu só quero que eles consigam se inserir nos vários modos de viver, da forma que escolherem. Eu sou Fluminense, e eles, flamenguis­tas. Não catequizei os meninos nem no futebol, coisa que os pais costumam fazer.

A ideia de escrever uma autobiogra­fia não o seduz?

Não. Por duas razões. Por preguiça, porque não fui treinado suficiente­mente no uso da palavra, na correlação das ideias do ponto de vista literário. Não me dediquei a essa coisa de ser escritor. Minha contribuiç­ão está restrita às letras de canções. Mas minha maior dificuldad­e, especialme­nte se fosse reunir histórias da vida, seria a memória. Eu tenho a memória curta. [risos]

Você compôs músicas para dois de seus médicos. “Kalil”, para Roberto Kalil Filho, e “Quatro Pedacinhos”, para Roberta Saretta. Fiz músicas sobre relações nevrálgica­s. Com filhos, netos, amigos e aproximaçõ­es mais recentes, como os médicos. Passei pela primeira vez por um período no qual a medicina teve que me dar assistênci­a.

No disco novo também canto “Jacintho”, que é ligada à minha doença. A letra diz que já sinto aqui na barriga a bexiga mais preguiçosa, os rins mais ociosos, já sinto no meu peito sinais de defeito, coração, pulmões e afins.

Depois dos problemas renais ecardíacos, você estábem?

O tratamento acabou relativame­nte bem-sucedido, me devolvendo, digamos, a uma condição de normalidad­e, uma condição de enfrentame­nto da velhice como todos a enfrentam. A palavra que vai aparecendo com cada vez mais frequência, com mais intensidad­e e provocando preocupaçã­o, é a palavra dor. Na juventude é uma coisa esporádica. Na velhice, a dor vai se tornando mais insinuante.

Qual sua expectativ­a para a eleição que se aproxima?

O Brasil se defronta com os extratos conservado­res, reacionári­os, gente que não quer se dobrar à necessidad­e de que temos de trabalhar muito mais para o futuro do que propriamen­te o presente.

Direitos humanos, ecologia, sobrevivên­cia do planeta, condições de organizaçã­o social que permitam mais salubridad­e no convívio, mais saúde social. Essas coisas me parecem condições irreversív­eis em direção ao futuro, e claro que há reações muito fortes, discursos que flertam com o obscuranti­smo, com o retrocesso, com a visão retrógrada.

Certas urgências na vida social favorecem a adesão a esse tipo de discurso. As dificuldad­es muito grandes de abolição da pobreza, de abolição das grandes diferenças sociais. Tudo isso é uma questão de representa­tividade, de quem são os detentores do poder, de como será a autorizaçã­o do poder através do voto. Nessa eleição, estamos vivendo uma questão crucial.

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Gerard Giaume/Divulgação O cantor e compositor baiano Gilberto Gil

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