Folha de S.Paulo

Nunca acreditei que iria falar de aborto 45 anos após conquista

Advogada que defendeu direito de interrompe­r a gravidez no caso Roe vs. Wade, marco da legalizaçã­o nos EUA, teme revés, mas diz que consciênci­a sobre escolhas se ampliou

- Sarah Weddington

Advogada que defendeu o direito de interrompe­r a gravidez no caso Roe vs. Wade nos anos 70, marco da legalizaçã­o do aborto nos EUA, Sarah Weddington, 73, vê risco de retrocesso sobre o tema, mas considera que aumentou a consciênci­a de que a decisão cabe à mulher.

Em janeiro de 1973, a advogada americana Sarah Weddington tinha 27 anos e venceu o maior caso de sua vida e da vida de muitas outras mulheres: o Roe versus Wade, que legalizou o aborto nos Estados Unidos.

Se alguém lhe dissesse que o assunto ainda estaria em debate no mundo 45 anos depois, ela não teria acreditado.

Weddington ainda vive em Austin, no Texas, onde o caso começou. Em entrevista à Folha, ela defende que a decisão da interrupçã­o da gravidez não cabe ao governo e que a criminaliz­ação do procedimen­to não é a solução.

Afinal, quem decide pelo procedimen­to, alega, “vai encontrar uma forma de fazer um aborto” e vai se expor a condições arriscadas. Ela conta ter feito um aborto no fim da década de 1960, no México, e diz ter tido “sorte de encontrar um bom médico”.

A resposta aos políticos que barrarem a legalizaçã­o, como fizeram os senadores argentinos na última quinta (9), virá nas urnas, afirma. Como no Brasil, que debate o tema agora no Supremo Tribunal Federal, a Argentina só permite o aborto em casos de estupro e risco de morte para a mãe (a lei brasileira prevê também em casos de anencefali­a).

Por outro lado, a advogada de 73 anos vê risco de retrocesso nos EUA, onde o presidente Donald Trump indicou para a Suprema Corte o juiz Brett Kavanaugh, que, se aprovado pelo Senado, consolidar­á no tribunal máximo uma maioria conservado­ra.

Weddington não espera que o aborto passe a ser considerad­o ilegal em seu país na esfera federal, mas teme que a decisão sobre legalidade seja passada aos estados. No sul e no miolo dos EUA, a oferta do procedimen­to já vem sendo restrita por cortes de verbas e obstáculos burocrátic­os.

No Brasil, o aborto é crime —a não ser em casos de estupro, feto anencéfalo ou risco à vida da mulher. Como a sra. vê

a criminaliz­ação do procedimen­to?

Quando a mulher decide que não pode levar uma gravidez adiante, e há muitas razões que podem levá-la a tomar essa decisão, ela vai encontrar uma forma de fazer um aborto. Geralmente, em condições perigosas.

O hospital John Peter Smith, em Dallas, contava com uma unidade de tratamento voltada só para mulheres que haviam tentado abortar e estavam com a saúde em risco. Os médicos do estado eram a favor de mudar a lei, que só autorizava aborto em caso de risco à vida da grávida, porque perceberam que tornar o procedimen­to ilegal não impedia que fosse realizado. Mesmo antes do Roe vs. Wade, eu ajudei mulheres muito jovens ou muito pobres a realizar um aborto seguro.

Foi assim que entrou no caso, certo?

Eu havia terminado a faculdade de direito e trabalhava com um grupo de estudantes, sobretudo mulheres, da Universida­de do Texas. Abrimos um centro de aconselham­ento para ajudar mulheres a evitarem a gravidez. Mas muitas chegavam grávidas, pedindo indicação de onde fazer o aborto. Começamos a coletar informaçõe­s sobre locais, custo e os melhores médicos. Com medo de que fôssemos considerad­as cúmplices do crime de aborto e presas, as estudantes me convidaram para entrar com um processo contra o Texas para mudar a lei. Eu disse que deveriam chamar alguém mais experiente.

Como foi para a sra.?

Eu só tinha trabalhado com casos de divórcio, de adoção e de pessoas muito pobres. Mas aceitei. E de graça. O processo começou em uma corte federal de Dallas, em 1971. Os juízes entenderam que a proibição era inconstitu­cional porque a Constituiç­ão dos EUA prevê o direito à privacidad­e, e as mulheres deveriam poder decidir por si se levariam uma gravidez adiante ou não. O caso foi para a Suprema Corte, e a decisão saiu em 1973.

Como a sra. recebeu a decisão?

Em janeiro daquele ano, o telefone tocou. Era uma repórter do The New York Times, que me contou que eu havia ganho por 7 votos a 2. Foi um momento muito empolgante nos Estados Unidos. Se alguém tivesse me dito há 45 anos que o aborto ainda estaria sendo discutido hoje em dia, eu nunca teria acreditado. Mas aqui estamos nós.

Qual foi a sensação?

Sentime muito grata. Virei a mulher mais jovem a ter ganhado um caso na Suprema Corte. Mas não pensei: “OK, agora tudo está resolvido”. Em vez disso, comecei a trabalhar em outras causas femininas. E acho que isso vai acontecer no Brasil se o aborto for legalizado, o foco vai se voltar para outras questões, como tipos de empregos disponívei­s para mulheres e paridade salarial.

A criminaliz­ação do aborto foi mantida pelo Senado na Argentina nesta semana. Quais as consequênc­ias?

Penso que as mulheres estão tão decididas e irão votar contra aqueles que dizem que a decisão sobre o aborto não cabe a elas. E acho que isso pode ocorrer no Brasil, se o aborto não for descrimina­lizado. As mulheres em todo o mundo estão muito mais ativas, tentando garantir que possam tomar suas próprias decisões.

Ser mulher trouxe algum desafio durante o julgamento?

Sim. Por exemplo, durante o julgamento, o procurador do Texas disse para os juízes da Suprema Corte que “argumentar contra uma mulher tão bonita é uma tarefa muito difícil”. Ninguém riu, foi um comentário extremamen­te inapropria­do. Também não havia banheiro feminino na época na área reservada aos advogados. Tive que ir para os fundos do prédio.

Como reagiu quando Norma McCorvey [a reclamante que abriu o processo sob o pseudônimo de Jane Roe] mudou de posição e passou a ser contra o aborto?

Fiquei decepciona­da, mas foi a decisão dela. Ela chegou a tentar reverter o Roe vs. Wade na Suprema Corte, mas os juízes negaram.

Roe vs. Wade pode ser revertido caso o juiz Brett Kavanaugh chegue à Suprema Corte?

É possível. Mas não acho que o aborto se tornaria ilegal em todo o país. Acredito que a decisão poderia ficar a cargo de cada estado. Hoje, o aborto é legal em muitos estados, mas os legislador­es tentam impedir a viabilidad­e do procedimen­to. As coisas não são perfeitas, mas podem piorar muito se a Suprema Corte votar contra Roe vs. Wade.

Hoje, 43 dos 50 estados americanos impõem alguma restrição ao aborto. É possível que isso mude?

Definitiva­mente, sim. Há processos em andamento no país para que os tribunais considerem as restrições ilegais. Mas há também outros estados tentando aprovar mais leis para dificultar o aborto. Um misto de atividades está em andamento. O que mais me surpreende é o quanto as discussões se espalharam pelo mundo. Brasil, Argentina e Chile reconsider­ando leis, países na África com casos semelhante­s. As mulheres não estão mais inclinadas a seguir o que o governo acha que é melhor. Agora, casais estão decidindo que a decisão cabe a eles.

Ter realizado um aborto nos anos 1960 a incentivou a lutar pelos direito da mulher?

Eu acreditava que se tratasse de uma escolha que cabia às mulheres desde antes da faculdade, mas certamente teve um impacto. Tive muita sorte, fiz o procedimen­to com um médico no México muito talentoso, indicado por um amigo de um amigo. Ele e a equipe fizeram um ótimo trabalho. Queria lembrar o nome dele para agradecê-lo.

Segundo pesquisa do Datafolha, divulgada em dezembro de 2017, 57% dos brasileiro­s são a favor da criminaliz­ação do aborto —número inferior aos 64% aferidos em 2016. O que a sra. citaria como possível motivo da queda?

Bom, também vemos aqui nos Estados Unidos um aumento na quantidade de pessoas que acreditam que a escolha deve ser da mulher, não do Legislador ou dos tribunais.

Acho que isso ocorre porque a maioria dos americanos conhece alguém que realizou um aborto desde 1973. E muito mais homens estão apoiando o direito de escolha. Mas ainda será uma grande questão a ser debatida nas eleições legislativ­as de novembro e até nas presidenci­ais de 2020. Acho que mais mulheres serão eleitas nos EUA, e haverá grande mudança na política.

O que vale mais, o direito à vida do feto ou o direito de escolha da mulher?

Algumas pessoas dizem que a vida começa na concepção, mas acho que a questão não deveria ser vista dessa forma. Acredito que a situação das mulheres é mais importante, porque geralmente elas já têm filhos e se esforçam para dar a eles apoio, amor, educação e saúde. No Texas, há um debate em andamento sobre uma proposta para obrigar que um feto resultante de um aborto seja cremado ou enterrado...

A descrimina­lização do aborto pode levar à redução da prevenção da gravidez?

Eu acho que a maioria das mulheres se previne contra a gravidez, quando possível. O que ouvi de muitas mulheres é que muitos homens não se esforçam para isso. O casal precisa se prevenir junto. Acho que não é certo culpar as mulheres.

O que a sra. acredita estar por trás da criminaliz­ação do aborto?

Mais do que tudo, a influência da Igreja Católica. Há muita influência religiosa [no debate]. Mas há menos pessoas nos Estados Unidos e em outros países que se guiam pelo que a Igreja diz. Estão mais determinad­as do que no passado.

O que a sra. diria para legislador­es e juízes que debatem a questão?

Diria que a questão-chave é: a quem cabe decidir sobre o aborto? E a resposta deve ser “à mulher grávida”. As pessoas deveriam se concentrar nisso, não se a vida começa na 12ª, 16ª ou 24ª semana de gestação.

 ??  ?? Com cartazes que dizem “reze para parar o aborto” e “escolha a vida”, manifestan­tes fazem comício em Washington
Com cartazes que dizem “reze para parar o aborto” e “escolha a vida”, manifestan­tes fazem comício em Washington
 ?? Denver Post - 10.mai.79/Getty Images ?? Sarah Weddington, 73A advogada represento­u Norma McCorvey no caso que legalizou o aborto nos EUA em 1973. Trabalhou no Legislativ­o do Texas, aconselhou o presidente Jimmy Carter (1977-81) em temas de gênero e lecionou na Universida­de do Texas em Austin por 28 anos. Hoje ela promove palestras no centro que leva seu nome
Denver Post - 10.mai.79/Getty Images Sarah Weddington, 73A advogada represento­u Norma McCorvey no caso que legalizou o aborto nos EUA em 1973. Trabalhou no Legislativ­o do Texas, aconselhou o presidente Jimmy Carter (1977-81) em temas de gênero e lecionou na Universida­de do Texas em Austin por 28 anos. Hoje ela promove palestras no centro que leva seu nome

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