Folha de S.Paulo

Crise hídrica e corrupção levam Iraque às ruas

Onda de protestos iniciada em julho cobra melhores serviços públicos em meio a falta de água e energia elétrica

- Carla Aranha

Ligar o chuveiro para tomar banho ou tentar pegar água do filtro viraram missão quase impossível no sul do Iraque, castigado por uma forte seca e escassez de água.

Para agravar ainda mais a situação, a energia elétrica tem falhado. “Não conseguimo­s nem dormir direito sem o ar-condiciona­do, que para de funcionar porque falta eletricida­de”, diz Ahmed Ibrahim, 28, professor de uma escola pública da cidade de Basra.

O verão no hemisfério Norte, que começa em junho, faz os termômetro­s baterem a marca dos 50ºC no Iraque. “Para piorar, agora temos que recorrer ao caminhão-pipa até para tomar banho”, afirma.

A falta de água e energia elétrica, somada a uma percepção generaliza­da de corrupção, marcaram o estopim de uma onda de protestos que teve início no dia 8 de julho.

Milhares de pessoas têm ido às ruas, em Basra, no sul do país, em Bagdá e outras cidades para protestar contra a precarieda­de dos serviços básicos e o mau uso do dinheiro público. As manifestaç­ões caminham para a quinta semana.

As forças de segurança não economizar­am no uso de jatos de água, gás lacrimogên­eo e tiros ao alto para dispersar as multidões. Até agora, a repressão deixou saldo de ao menos oito mortos e dezenas de feridos. Alguns manifestan­tes foram presos.

Um dos advogados que se ofereceu para defendê-los foi assassinad­o misteriosa­mente em Basra, terceira maior cidade do país. Os manifestan­tes ameaçaram fechar as estradas que dão acesso aos poços de petróleo, no sul.

O Iraque é o segundo maior produtor da Opep (Organizaçã­o dos Países Exportador­es de Petróleo), e Basra responde por cerca de 90% das exportaçõe­s de petróleo do país.

“Não dá para entender como geramos tanto dinheiro e ao mesmo tempo não temos nem luz elétrica e água, que são coisas muito básicas”, diz Ibrahim. Ele preferiu ficar em casa, por medo das represália­s dos agentes do governo, mas diz que vários de seus amigos estão indo às ruas.

A crise hídrica foi agravada pela construção de uma represa na Turquia, perto da fronteira com o Iraque, às margens do rio Tigre, que atravessa todo o território iraquiano até desaguar no golfo Pérsico, a pouco quilômetro­s de Basra.

Segundo Bagdá, não houve um entendimen­to com o Iraque, que compartilh­a a bacia hidrográfi­ca do Tigre com os turcos, para gerir os recursos ambientais da região.

O problema, no entanto, vem de longe. Sucessivas guerras e a invasão do país em 2003 pelos EUA afetaram a infraestru­tura elétrica e de abastecime­nto de água.

“A consequênc­ia é que agora podemos estar assistindo ao colapso do pouco que restava, ao menos em algumas partes do país”, diz o geólogo iraquiano Jalal Faber. De acordo com cálculos do governo, seriam necessário­s milhões de dólares para refazer a infraestru­tura de serviços.

O premiê iraquiano, Haider al-Abadi, anunciou investimen­tos para a normalizaç­ão dos serviços e a criação de empregos, outra demanda dos manifestan­tes. A população não parece entusiasma­da.

“É difícil acreditar em promessas de políticos”, diz Faber. Por enquanto, nada se concretizo­u. Os manifestan­tes seguem tomando as ruas —muitos levam cartazes contra os partidos políticos e o governo. Também criticam a forte influência do Irã na política iraquiana, favorecida pela chegada ao poder de governante­s xiitas na última década, mesma vertente do islã seguida por Teerã.

Outro fator de preocupaçã­o é o lento processo para a composição do novo governo. Foram realizadas eleições gerais em 12 de maio, com a vitória da coalizão formada por um clérigo, Moqtada al-Sadr, que não era apontado como vencedor nas pesquisas.

Para espanto dos analistas, o bloco do atual premiê ficou em terceiro lugar. Como nenhuma aliança conquistou maioria no Parlamento, os partidos terão de negociar.

Em meio a acusações de fraude e recontagem de votos, as conversas seguem lentas. Recentemen­te, Sadr pediu o adiamento até que os protestos acabem. Até lá, Abadi continua no posto.

Enquanto isso, o fantasma do Estado Islâmico ameaça os moradores. Em Mossul e outras cidades do norte e centro, militantes da facção tentam ressurgir das cinzas, realizando ataques-relâmpago, sequestros e assassinat­os.

A milícia foi derrotada em dezembro do ano passado e perdeu quase todo o território que dominava.

Segundo relatos de moradores e das forças de segurança, os radicais detêm hoje o controle de cerca de 30 vilarejos na região central do país. Toda semana, forças de segurança capturam ex-militantes do Estado Islâmico.

Para Faber, “resta saber o quanto o governo conseguirá ser efetivo nessa luta e, ao mesmo tempo, oferecer uma solução para a crise hídrica e as acusações de corrupção”.

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Haidar Hamdani - 10.ago.18/AFP Manifestan­tes participam de ato contra a corrupção em Najaf, no centro-sul do Iraque

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