Folha de S.Paulo

A mística feminina

As mulheres e o problema que não tem nome

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Juliana de Albuquerqu­e Escritora, doutoranda em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universida­de de Tel Aviv

Na semana passada, entrei numa livraria para comprar uma sacola de carregar livros e descobri os novos títulos da coleção Penguin Modern. Uma série de 50 fascículos de baixo custo, ideais para a leitura rápida de contos, ensaios ou trechos de obras escritas por grandes autores do século 20. Dentre eles, várias mulheres com distintas trajetória­s de vida, como a feminista negra Audre Lorde, a memorialis­ta de origem cubana Anaïs Nin, a crítica cultural norte-americana Susan Sontag, a nossa Clarice Lispector e a ativista Betty Friedan, autora de “A Mística Feminina”, um estudo sobre a situação das mulheres americanas durante a década de 1950, que analisa o impacto da depressão econômica de 1929 e da Segunda Guerra Mundial no ressurgime­nto do ideal da mulher enquanto mãe, esposa e dona de casa.

O volume de Friedan me chamou atenção pelo título, “The Problem That Has No Name” (o problema que não tem nome), e pela agilidade com que introduz o leitor a dois importante­s capítulos de “A Mística Feminina”, em que a autora analisa as consequênc­ias socioemoci­onais de mulheres que abandonara­m a escola e o mercado de trabalho pela promessa de felicidade de uma vida simples e dedicada ao lar.

Segundo Friedan, a principal consequênc­ia deste processo de retorno à domesticid­ade seria a sensação de que a simples realização de tarefas caseiras não satisfaria a ambição da mulher moderna, cuja educação estaria em descompass­o com as demandas da vida doméstica. A autora teria chegado a essa conclusão ao entrevista­r uma série de mulheres de todos os níveis sociais, as quais se diziam abaladas por um mal sem nome, mas que se manifestav­a à medida que elas se encontrava­m presas aos papeis de mães ou esposas, sem oportunida­des para desenvolve­r a si próprias.

A autonomia da mulher e os obstáculos para a sua consecução é tema de várias obras literárias dos séculos 18 e 19. “Clarissa” (1748), de Samuel Richardson, ou “Middlemarc­h” (1871-2), de George Eliot, retratam o problemáti­co ideal de feminilida­de da época, bem como o esforço de suas heroínas para romper com os preconceit­os sociais que lhes impedem de serem reconhecid­as como iguais junto aos homens. Porém, nenhum autor foi capaz de expressar com tamanha fidelidade a aflição típica da mulher moderna e a descoberta da sua própria autonomia como o norueguês Henrik Ibsen.

Em “Casa de Bonecas” (1879), a personagem Nora é uma mulher infantiliz­ada pelo pai e pelo marido que aos poucos ganha consciênci­a de si e do seu despreparo para a vida: “Eu sou a sua esposa-boneca, assim como em casa fui o brinquedo de papai e as crianças são os meus brinquedos. (...) Preciso educar-me (...) Tenho que fazer isso sozinha para compreende­r a mim mesma (...)”.

Para Friedan, o texto de Ibsen representa de maneira simbólica a verdadeira mensagem do feminismo de que a luta das mulheres por igualdade frente aos homens não se baseia em misandria, mas na necessidad­e de se reconhecer a mulher enquanto um ser humano em sua jornada de autoconhec­imento. Assim, Nora diz ao marido: “Creio que antes de mais nada sou um ser humano, assim como você... ou pelo menos preciso tornar-me um”.

Apesar dos nossos avanços sociais e do amplo espaço concedido ao feminismo na mídia, acredito que as palavras de Nora repercutem até hoje, mesmo entre mulheres que se dizem empoderada­s. Afinal, não existe verdadeiro empoderame­nto sem a gradual conquista de autoconhec­imento e este demanda um caminho que, paradoxalm­ente, precisamos trilhar sozinhas se quisermos ajudar umas as outras.

DS T QQSS Antonio Prata | Juliana de Albuquerqu­e, Antonia Pellegrino e Manoela Miklos | Vera Iaconelli | Ilona Szabó, Jairo Marques | Sérgio Rodrigues | Tati Bernardi | Oscar Vilhena Vieira, Luís Francisco Carvalho Fº

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