Folha de S.Paulo

Curador da Bienal de São Paulo defende processo horizontal na escolha das obras

[resumo] Curador da 33ª Bienal de São Paulo, com o título ‘Afinidades Afetivas’, defende horizontal­ização do processo de escolha das obras

- Por Gabriel Pérez-Barreiro Curador geral da 33ª da Bienal de São Paulo

Quando a Bienal de São Paulo foi fundada, em 1951, como a segunda bienal internacio­nal depois de Veneza (1895), sua missão era clara: colocar a arte brasileira “em vivo contato” com a produção internacio­nal.

Isso era coerente com a estrutura modernizan­te e progressis­ta da elite cultural brasileira da época, cuja ambição era combinada com notável “savoir faire” e uma força financeira que colocaram o Brasil no mapa da arte internacio­nal quase imediatame­nte, enquanto injetava energia nova na cena de arte local.

As primeiras bienais foram organizada­s com uma lógica enciclopéd­ica. Como em Veneza, os países eram convidados a enviar seus “melhores” artistas. Mas, diferentem­ente de Veneza, a Bienal em si organizari­a grandes exposições dos maiores artistas da época, incluindo Picasso, Calder, Klee e outros, além de dar visibilida­de a uma nova geração de artistas brasileiro­s, como Abraham Palatnik, Geraldo de Barros ou Lygia Pape. Além dessas exposições, havia também mostras de arquitetur­a, design gráfico, joalheria, a chamada arte primitiva e até arte das missões jesuíticas do Paraguai.

Alinhada com transforma­ções mais amplas no mundo da arte, a Bienal começou a questionar esse modelo nos anos 1980, momento em que a figura do curador emergia como novo agente organizado­r em eventos desse tipo. Esperava-se então que as bienais propusesse­m algo intenciona­l e que organizass­em seus conteúdos segundo essa ideia. A partir desse momento, a bienal-tese vira o modelo operaciona­l inquestion­ado das bienais, tanto em São Paulo quanto no resto do mundo.

Durante a maior parte de sua história, a Bienal de São Paulo foi uma das poucas de um grupo minúsculo de bienais. Hoje, segundo um levantamen­to recente, existem cerca de 320 bienais ou eventos semelhante­s em todo o mundo. A bienal de arte se tornou, em certa medida, o símbolo mais visível do sistema da arte contemporâ­nea: tentando chegar a um equilíbrio conturbado entre a frivolidad­e social dos eventos de abertura para a elite do mundo da arte e a estrutura teórica cada vez mais densa de seus postulados curatoriai­s.

Livres dos constantes compromiss­os programáti­cos e burocrátic­os do museu ou do centro de arte contemporâ­neos, as bienais operam com um privilégio único de potencialm­ente se reinventar a cada dois anos.

Essa aparente liberdade cria dois grandes desafios: para a instituiçã­o, existe a dificuldad­e de manter apoios consistent­es e uma relação com os públicos locais em nome dos quais esses eventos são organizado­s; intelectua­lmente, o desafio é como inovar dentro de um modelo que, apesar de sua liberdade, parece frequentem­ente gerar muitos eventos do mesmo tipo, nos quais conceitos similares são repetidos como parâmetros para muitos dos mesmos artistas que compõem o circuito particular das bienais.

Quando, nos anos 1980, o curador começou a emergir como centro do sistema da arte contemporâ­nea, houve a ascensão do “curadorism­o”, a ideia de que a tese curatorial é o motivo e o atributo principal de uma exposição. Naquela época, a ideia de que ser curador (especialme­nte um curador independen­te) era até uma profissão viável começou a ganhar força, e diversos programas de graduação em estudos curatoriai­s foram fundados para servir a esse campo profission­al e intelectua­l florescent­e.

Tendo como modelo uma ênfase quase exclusiva em exposições coletivas temáticas de arte contemporâ­nea, esses programas cimentaram a ideia de que uma exposição era sobretudo uma oportunida­de de propor uma tese, na qual as obras deveriam ser alinhadas para “ilustrar” ou “provar” uma proposição curatorial.

Nos anos seguintes, a Bienal se tornaria o palco privilegia­do em que essas teses podiam ser demonstrad­as e comparadas. Ou seja, o curador se tornou uma figura de poder, detentora do discurso oficial da arte, e a equipe participan­te de seu projeto, dos artistas aos mediadores das visitas do público, seus porta-vozes.

Com essa história como pano de fundo e a atual crise política e econômica no Brasil chegando ao seu ápice, recebi o convite para ser curador da 33ª Bienal de São Paulo. Minha maior preocupaçã­o era encontrar uma forma de responder a esse cenário atual sem incorrer na repetição das duas bem-sucedidas edições anteriores, cuja abordagem político-social era bastante direta.

A instrument­alização do pensamento na atualidade, seja pela imposição técnica em todos os campos produtivos, seja pela influência avassalado­ra da tecnologia (principalm­ente na figura das mídias sociais, em sua cooptação de nossa atenção), era outra questão urgente que merecia ser contemplad­a.

Ao mesmo tempo, honrar a tradição experiment­al da Bienal paulistana pressupunh­a desafiar seu modelo curatorial, levando em conta a trajetória desse evento de se repensar ao longo dos anos.

Como diria Leonilson, “são tantas as verdades”. Tantas que, às vezes, fica difícil saber como se posicionar diante dessa desintegra­ção da vida política que vivemos. A cena das artes visuais em geral e a política do Brasil pareciam apontar para um mesmo esgotament­o: o do discurso que se pretende a solução absoluta de questões muito mais complexas, que não podem ser respondida­s senão pela experiênci­a da coletivida­de. Qual seria meu ponto de partida para conceber essa curadoria como um contrapont­o a isso?

Há uma frase atribuída a Mário Pedrosa que diz: “Em tempo de crise, fique do lado dos artistas”. Esse me pareceu o norte a ser seguido. Os artistas, que sentem o pulso da vida de maneira distinta, poderiam oferecer esse olhar múltiplo (em oposição à figura messiânica do curador com suas verdades fechadas), dando ao público outras condições para ativar suas sensibilid­ades.

Em vez de se preparar para “entender” as obras expostas sob a égide de uma voz única, o espectador pode relaxar e fruir a arte a partir de suas próprias referência­s.

Foi dessa forma que surgiu o modelo de curadoria híbrida dessa Bienal, em que selecionei 12 artistas para apresentar­em exposições individuai­s ao lado de sete exposições coletivas idealizada­s por artistas de gêneros, países e trajetória­s distintos. A diversidad­e da curadoria, dos artistas, da produção e do educativo quer permitir ao público a oportunida­de de se expressar diante da arte, de libertar seu aparato sensível e, com isso, sair da apatia condiciona­da pelos algoritmos tecnológic­os, que só fazem reiterar a imagem única de nosso narcisismo.

Horizontal­izar e diversific­ar o modelo de curadoria me pareceu a única forma coerente de fazer uma Bienal de São Paulo articulada com seu cenário sociopolít­ico. Com isso, não me outorgo o direito de decretar o fim da curadoria centraliza­da —o que também seria uma posição exclusivis­ta e arbitrária. Mas ganha vida nesta Bienal a proposição de uma experiênci­a que só se pode produzir pela participaç­ão de todos.

Se ficar do lado do artista é abraçar a diferença, talvez esse modelo possa contribuir para um novo pensamento, mais plural, também na vida.

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urbana, permanece como objetivo primeiro de quase todas as cidades em busca de capital cultural e receitas alternativ­as. Entretanto a estratégia veneziana surge agora numa protocolad­a articulaçã­o entre instituiçõ­es públicas de arte e agências governamen­tais com patrocinad­ores e filantropo­s, sempre apoiados por serviços de turismo do lugar e por um eficiente setor de comunicaçã­o e marketing.

A espetacula­rização da cidade se dá com a instalação de obras em locais públicos, trabalhos interativo­s e high-tech, com o desenvolvi­mento de projetos comunitári­os e site specific, e com a incorporaç­ão de espaços abandonado­s como partes do aparato expositivo.

Com duração média entre dez e 12 semanas, as mostras bienais já não são apenas uma exposição, mas adquirem um caráter imersivo, pondo em movimento um grande “complexo exibitivo”, com filmes, performanc­es, seminários, conferênci­as e programas de residência.

A cidade hospedeira, parte da economia criativa, oportunida­de de inovação e empreended­orismo, tornase então membro de uma espécie de clube, o “mundo da arte” globalizad­o, uma marca com capital simbólico valioso, sem encargos de algo permanente e com assegurado­s ganhos para políticos e empresário­s.

Temas definidos

Bienais já não se organizam por pavilhões nacionais como 50 anos atrás, ainda que a participaç­ão das agências de cooperação e cultura dos países represente um aporte financeiro significat­ivo a elas, por meio do financiame­nto de seus artistas, assegurand­o assim a presença do nacional no circuito globalizad­o.

Hoje, em sua maioria, elas se organizam por temas definidos pelos curadores, sempre com artistas convidados e quase sempre a partir de outras bienais, fazendo um balanço do estado da arte num período determinad­o, algo diverso daquele do salão de vanguarda dos anos 1960, aberto à arte emergente e ao pensamento crítico, um lugar de experiment­ação, radicalida­de e risco.

Em 2008, com o título ‘Em Vivo Contato’, a 28ª Bienal manteve vago todo o segundo andar do prédio da instituiçã­o, em SP, e ficou conhecida como ‘Bienal do vazio’

O espaço marcava uma crise conceitual e uma mudança de rumos do evento; o andar foi alvo de pichação, o que acabou provocando polêmica sobre arte urbana

Por certo, as bienais ainda são espaços relevantes na produção de experiênci­a e conhecimen­to sobre a contempora­neidade, mas o tema é uma estratégia necessária para articular um território que abrigue artistas de diversas praticas e procedênci­as, apontando questões e tendências da produção.

Ao mesmo tempo ele também é determinan­te para o planejamen­to logístico, financeiro e de comunicaçã­o e marketing da empreitada. Cada exposição tem um valor e cria valor. Daí que a profission­alização, a institucio­nalização simbólica e a economia dessas mostras acarretara­m a “museificaç­ão” delas, impondo um protocolo de princípios, relações, procedimen­tos e resultados.

Decorre também deste novo estatuto, por um lado, que por serem espaços privilegia­dos de informação e pesquisa sobre as produções artísticas contemporâ­neas e por apresentar­em de modo organizado e mediado a diversidad­e delas, muitas bienais convertera­m-se em museus de arte temporário­s, renovados e reinstalad­os periodicam­ente.

Desta forma elas cresceram também como vitrines de novidades e tendências que influencia­m as escolhas futuras dos colecionad­ores, mas, sobretudo, dos museus, pois essa arte contemporâ­nea é o segmento que mais cresce nas respectiva­s coleções e acervos e leva à criação de novos museus e centros de arte.

Feiras de arte

Por outro lado, diante da crescente e pujante comerciali­zação da arte contemporâ­nea —um ativo de luxo—surge a percepção de que essas mostras periódicas estariam comprometi­das com o mercado de arte: ao boom das bienais seguiu-se o boom das feiras de arte. Mas elas não são a mesma coisa: enquanto a segunda é uma atividade prioritari­amente comercial, a primeira define um espaço aberto de trocas, confrontos, diálogo e debates entre artistas, curadores e pensadores com o público de arte.

Por vezes, há, sim, uma relação bastante produtiva entre ambas: muitos dos projetos desenvolvi­dos por artistas e apresentad­os em bienais só foram possíveis porque financiado­s por suas galerias. E isso não é mau em si. Ganhamos todos.

O problema está em se as bienais, tradiciona­is instâncias legitimado­ras da arte contemporâ­nea, só sobreviver­em como agentes de ponta de um mercado ávido por carne fresca. Pior: consideran­do a perspectiv­a local inserida no circuito global em que operam, elas correm o risco de estarem se tornando provedoras de exotismo para consumo, de espaços de interação com a alteridade e dos álibis políticos e sociais para o capitalism­o neoliberal globalizad­o.

Porque algo positivo e transforma­dor surgiu com explosão de bienais ao longo destes mais de 40 anos. O modelo tem assegurado a emergência e a visibilida­de de produções e práticas artísticas desconheci­das ou marginaliz­adas, de experiênci­as históricas e culturais diversas, vindas das periferias, daquelas mostras em qualquer lugar. São elas que dão capilarida­de e sustentabi­lidade institucio­nal ao modus operandi e ao sentido original do modelo, revelando artistas e trabalhos inéditos até então.

Mais que qualquer outra instituiçã­o no sistema da arte, as bienais fazem hoje a mediação entre o local, o nacional e o transnacio­nal. São uma sorte de “máquinas hegemônica­s” (Oliver Marchart), promovendo a passagem do local para um campo de embates simbólicos por legitimida­de na sociedade global.

As mostras menores, regionaliz­adas, muito têm contribuíd­o para a descentral­ização da narrativa hegemônica das bienais tradiciona­is (Veneza, São Paulo, Kassel, Sydney) sobre a arte e o fazer artístico, promovendo assim a emergência de outras representa­ções, alternativ­as de expressão e conhecimen­to, outras narrativas. Politizada­s, muitas delas tornaram-se uma estratégia importante nos processos envolvendo relações pós-coloniais, resistênci­a cultural, recuperaçã­o de histórias e memórias coletivas, fazendo visíveis e afirmando essas identidade­s na globalizaç­ão. A história global do futuro também está sendo escrita pela periferia.

Ao lado dos movimentos sociais, das migrações e de uma nova ordem no mundo, essas bienais impuseram certo tom político ao circuito artístico global, levando quase todas elas, inclusive aquelas que representa­m o mainstream de acordo com os mercados, a se proporem como um lugar de confluênci­a entre arte e ação política. Nada novo. Já era um mote do circuito artístico-intelectua­l nos anos 1960-70, agora em outra escala, circunstân­cias e propósitos. Além da certeza de bom marketing.

Por certo, todo esse aparato de espaços, profission­ais e serviços, todo o investimen­to financeiro que representa­m, a visibilida­de que recebem e os ganhos reais que trazem, fazem das bienais objetos de escrutínio e geram críticas ao modelo. É uma decorrênci­a natural, produtiva e necessária deste processo, parte da massa crítica que ele produz.

Pessoalmen­te, penso que o modelo, para o bem e para o mal, tem muita vida pela frente. Bienais e afins ainda podem ajudar a transforma­r nossa percepção da arte e das cidades e podem ter um papel importante no desenvolvi­mento de comunidade­s.

Não por ser a segurança de algo novo ou valioso, mas por representa­r uma oportunida­de de procurar especifici­dades e construir pertinênci­a, uma vez que o modelo parece criticamen­te exaurido, banalizado. No século 21, diante do fluxo incessante da produção de imagens, da diversidad­e das práticas artísticas e da voracidade da economia que alimenta o circuito, talvez as bienais possam ser ainda agentes da internacio­nalização e do cosmopolit­ismo, se fundadas nas singularid­ades do lugar de origem, nas demandas imediatas da região em que se inscrevem, no conhecimen­to e aprofundam­ento de questões e referência­s que informam a produção de visualidad­e no mundo contemporâ­neo.

Trata-se, portanto, de redirecion­ar sua vocação para, em lugar de tentar produzir visões totalizant­es e representa­tivas do fenômeno da arte na atualidade, delinear singularid­ades, promover individuaç­ões, produzir outras cartografi­as, pondo em marcha um processo de trabalho investigat­ivo e crítico, regular e sistemátic­o, que acompanhe e dê conta de modo produtivo dos movimentos e transforma­ções percebidos nas práticas artísticas num circuito determinad­o, assim como das reverberaç­ões que elas causam e ecoam.

As bienais hoje ainda têm um papel importante no imaginário artístico e cultural contemporâ­neo, mobilizand­o profission­ais, serviços e visitantes, que asseguram que tais exposições, em qualquer lugar, sempre apresentem alguma coisa que vale a pena ser vista. Mas, sobretudo, porque elas constituem um espaço valioso, uma oportunida­de significat­iva para os artistas produzirem e mostrarem seus trabalhos contextual­izados com seus pares de diferentes partes do mundo, promovendo um diálogo potente, um encontro produtivo, que ao fim e ao cabo é o que importa. Pois é desta forma que eles mantêm a arte e a sociedade em movimento, já que a primeira sempre poderá produzir algo disruptivo na segunda. Bienal, bienais, ainda e sempre.

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Detalhe de “O Tudo e a Flor de Sônia Catarina” (2018), obra da artista Sofia Borges

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