Folha de S.Paulo

Os índios do veneno

Expedição do fotógrafo brasileiro documenta os índios suruwahas, que vivem sem cacique ou qualquer outra hierarquia em uma pequena comunidade isolada no sul do Amazonas, onde produzem toda sua comida, cultivam o vigor físico e preservam tradições —como a

- Leão Serva

Fotógrafo Sebastião Salgado documenta tribo que usa poções para matar e morrer

Eles são 154 pessoas e sua população segue crescendo (eram cem nos anos 1980). Com a saúde exuberante, produzem todos os alimentos que consomem e têm grande orgulho de suas técnicas de agricultur­a, particular­mente apuradas. Para caçar, usam armas tradiciona­is, o arco e a zarabatana, com que atiram setas de ponta envenenada. São mestres no uso de poções. Não têm caciques, mas os grandes caçadores, sempre reconhecid­os pelo número de antas que mataram, são prestigiad­os, considerad­os “madi iri karuji”, ou “pessoas de valor”.

“Os suruwahas representa­m para mim aquilo de mais próximo ao que Pedro Cabral deve ter visto ao chegar ao Brasil.” Assim Sebastião Salgado define sua impressão após a expedição fotográfic­a de 25 dias que realizou à terra indígena.

A comunidade está localizada no sul do estado do Amazonas, entre igarapés da bacia do rio Purus. A área fica a cinco dias de barco da cidade de Lábrea (850 quilômetro­s a sudoeste de Manaus).

“Eles escolheram viver em estado de quase total isolamento e mantêm suas práticas e a expressão visual de sua tradição cultural muito preservada­s. É muito impactante. Vê-los, ao chegar, me causou uma emoção muito grande”, acrescenta o fotógrafo, que ao longo das últimas décadas visitou alguns dos lugares e povos mais isolados da face da Terra.

Após contatos trágicos com outros índios e brancos na segunda metade do século 19, os suruwahas (pronuncia-se “suru-uarrás”) se retiraram para o fundo da floresta e lá ficaram isolados até o início dos anos 1980.

Na época, pescadores, caçadores e seringueir­os ameaçavam a área onde havia sinais da presença de índios.

Indigenist­as do Cimi (Conselho Indigenist­a Missionári­o, ligado à Igreja Católica) fizeram contato com os suruwahas e, então, iniciou-se o processo oficial de reconhecim­ento da terra indígena, que foi homologada pela União em 1991.

Depois de um breve período de convivênci­a com duas instituiçõ­es religiosas —o Cimi e a evangélica Jocum (Jovens com uma Missão)—, desde o início dos anos 2000 os índios passaram a se beneficiar da chamada política do não contato.

A Coordenado­ria de Índios Isolados ou de Recente Contato da Funai (Fundação Nacional do Índio) mantém apenas um posto que fica a mais de sete horas de viagem, por barco, da aldeia. Quando autorizado pela Funai, um visitante precisa, antes de ir até lá, fazer uma quarentena de 12 dias no posto da entidade para comprovar que não possui doença que possa contaminar os índios.

Apesar da distância, esse grupo frequenta o noticiário e é alvo de estudos acadêmicos por uma caracterís­tica cultural geralmente chocante para um não suruwaha: a ocorrência frequente de suicídios, provocados com o uso do timbó, veneno usado por outros povos apenas para pesca. Essa tem sido a principal causa de mortes entre eles. A fama dessa ocorrência os levou a serem chamados de “os índios do veneno”.

Antropólog­os, indigenist­as e missionári­os se debruçaram sobre o tema sem uma conclusão sobre as causas desse comportame­nto e sem conseguir eliminar os casos —que, no entanto, têm diminuído.

A maior parte dos suicídios ocorre entre pessoas na faixa de 14 a 28 anos, em pleno vigor físico.

Contribui para isso sua mitologia. Os suruwahas acreditam na existência de três céus ou planos para os quais a pessoa ruma após a morte.

“Desses céus, aquele onde a vida é mais favorável é o que reúne os que morrem fortes e saudáveis, em vez dos dois outros: o que reúne os picados por cobra e aquele para onde vão os que morrem depois de velhos”, conta Salgado.

Os suruwahas são também uma sociedade anárquica. Não têm líderes, não têm chefia. “Kwakway éo mais respeitado, dono da maior maloca, parte de uma família numerosa. Mas isso não dá a ele um papel de ‘chefe’”, explica.

O igualitari­smo radical faz com que não haja entre os índios autoridade com mandato para cercear ou censurar alguém. As decisões de interesse comum são tomadas à noite, depois da comida, em conversas abertas. Atitudes pessoais são responsabi­lidade dos indivíduos: o grupo pode criticar alguma ação isolando seu autor, deixando de falar com ele. Mas não há punições.

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Sebastião Salgado
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Os índios Uhwi, Niaxixibu, Bibi, Giani e Hymanai, do grupo suruwaha, na beira do igarapé Pretão, que banha sua terra, localizada no sul do Amazonas

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