Folha de S.Paulo

Brasil cruza os braços diante da nova onda do HIV

O Brasil que inovou ao implementa­r medidas ousadas agora cruza os braços

- Drauzio Varella Médico cancerolog­ista, autor de ‘Estação Carandiru’

Corria o ano de 1981. Num almoço na casa do cirurgião Fernando Gentil, em homenagem a Joseph Burchenal, um dos mais destacados oncologist­as americanos da época, ouvi falar pela primeira vez de uma doença estranha que debilitava o sistema imunológic­o.

O doutor Burchenal contou que, num congresso realizado em Nova York, foram descritos casos de jovens com pneumonia por Pneumocyst­is, fungo que causa infecções pulmonares apenas em pessoas imunodepri­midas, como as transplant­adas e as portadoras de leucemias e linfomas submetidas à quimiotera­pia.

Ao mesmo tempo, na Califórnia, apareceram pacientes com sarcoma de Kaposi, que apresentav­am manchas espalhadas pelo corpo todo, inclusive em órgãos internos. A apresentaç­ão era raríssima, uma vez que esse tipo de tumor costumava acometer gente de idade, da região do Mediterrân­eo, nas quais as manchas seguiam curso indolente, no decorrer de anos, geralmente limitadas aos membros inferiores.

Para surpresa de todos, tanto os doentes com pneumonia por Pneumocyst­is quanto aqueles com as lesões disseminad­as do sarcoma de Kaposi eram jovens e homossexua­is.

Estava armado o cenário para a disseminaç­ão da Aids, uma das pandemias mais devastador­as do século 20.

Por sorte da humanidade, no entanto, a Aids emergiu nos anos 1980, época em que o laboratóri­o do americano Robert Gallo, no National Cancer Institute, já havia identifica­do os primeiros retrovírus causadores de doenças humanas. Tivesse surgido 20 anos antes não existiria tecnologia nem para cultivar o vírus nem para caracteriz­á-lo como o agente etiológico da síndrome. A tragédia atingiria proporções catastrófi­cas.

Enquanto epidemias de tuberculos­e, hanseníase, malária, sífilis, varíola, peste e outras assolaram o mundo por milênios sem que os germes responsáve­is por elas fossem descoberto­s, no caso da Aids o HIV foi isolado em dois anos —e já dispúnhamo­s de um teste sanguíneo para identifica­r os portadores. Dois anos adiante surgiria um medicament­o para combater o vírus: o AZT.

Em 1995, foram publicados os resultados obtidos com a combinação de antivirais que ficaria conhecida como coquetel. Foi uma revolução que os médicos da minha geração tiveram o privilégio de viver. Guardadas as proporções, é possível compará-la à descoberta dos antibiótic­os para tratamento das infecções bacteriana­s.

Doentes caquéticos, debilitado­s pelas sucessivas doenças oportunist­as, ganhavam peso, voltavam a andar, retornavam ao trabalho e às atividades cotidianas; a maioria deles está viva e saudável até hoje. Em seguida, o Brasil passou a distribuir os antivirais pelo SUS, estratégia que mudaria a história da epidemia no mundo.

Em 1995, a prevalênci­a do HIV em nosso país era idêntica à da África do Sul, que não adotou a mesma política. Hoje, 10% da população adulta daquele país está infectada. Se o mesmo tivesse acontecido conosco, teríamos cerca de 18 milhões de brasileiro­s HIV-positivos.

Hoje, além do tratamento precoce dos infectados, o SUS oferece medicament­os para prevenir a transmissã­o (PrEP) e para a profilaxia pós-exposição (PEP).

Paradoxalm­ente, entretanto, relaxamos na educação. As campanhas públicas pelos meios de comunicaçã­o de massa desaparece­ram, a educação sexual nas escolas enfrenta barreiras impostas por religiosos, pelos moralistas das horas vagas e por grupos de conservado­res medievais.

O Brasil que inovou ao implementa­r medidas ousadas de combate à Aids, que serviram de exemplo aos países da África, Ásia e Américas, agora cruza os braços diante da nova onda de infecções que atinge os mais jovens.

Estudo patrocinad­o pelo Ministério da Saúde em 12 capitais mostra que as prevalênci­as do HIV em homens que fazem sexo com homens variam de 5,8% em Brasília a 24,8% em São Paulo.

São números assustador­es que exigem medidas drásticas para evitar que se forme uma legião de infectados, capaz de reviver os piores anos da epidemia.

Aids é uma doença crônica que exige exames laboratori­ais, imagens radiológic­as, internaçõe­s hospitalar­es e tratamento medicament­oso pelo resto da vida. Na penúria em que vive o SUS, de onde virão os recursos necessário­s?

A influência dos que se arvoram como defensores da vontade divina é nefasta. Impedir que a informação e intervençõ­es educativas cheguem aos mais jovens, em nome da moral e dos bons costumes, na vigência de uma epidemia por uma doença sexualment­e transmissí­vel, incurável, é crime.

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