Folha de S.Paulo

60 anos do caso Lüth e a autoconten­ção judicial

Há conflitos que devem se resolver na arena política

- Dias Toffoli e Otavio Luiz Rodrigues Jr.

Vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (a partir de 13 de setembro, presidente) e ex-advogado-geral da União (2007-2009, governo Lula) Livre-docente e professor associado da Faculdade de Direito da USP

Há 60 anos, no início de 1958, o Tribunal Constituci­onal alemão julgou o caso Lüth, considerad­o por muitos como o mais importante de sua história. Pela primeira vez, uma corte constituci­onal admitia que um particular utilizasse direitos fundamenta­is contra outro particular.

Os direitos fundamenta­is estão presentes na maioria das Constituiç­ões desde o século 19, embora antes existissem, total ou parcialmen­te, sob outras formas ou denominaçõ­es (como direitos do homem e do cidadão, na Declaração de 1789).

Vida, liberdade, propriedad­e, liberdade de expressão ou acesso à Justiça são exemplos de tais direitos.

Em geral, eles se apresentam como um escudo ou como uma espada ao cidadão em face do Estado: no primeiro caso, para que ele se defenda das arbitrarie­dades estatais contra sua propriedad­e ou sua liberdade; como uma espada, os direitos fundamenta­is podem ser manejados pelo cidadão para exigir do Estado, por exemplo, direitos como saúde, segurança ou liberdade religiosa.

A grande inovação ocorrida em 1958 foi a de se entender que um particular poderia ofender direitos fundamenta­is em face de um igual. Houve casos antes do julgamento do Tribunal Constituci­onal Federal nos quais esse problema surgiu, mas somente com a decisão Lüth é que se criou uma doutrina permissiva da chamada “eficácia indireta dos direitos fundamenta­is em relação aos particular­es”, a qual se espalhou por todo o mundo, afirmando o prestígio do tribunal alemão e do modelo de jurisdição constituci­onal ali desenvolvi­do.

O caso tem particular­idades muito interessan­tes. Veit Harlan (18991964), durante o nazismo, foi um dos mais populares cineastas do regime. Em 1940, dirigiu o filme “O Judeu Süß”, uma das mais abjetas películas já produzidas por sua incitação ao ódio contra os judeus.

Após a guerra, assim como muitos dos que serviram ao nazismo, Harlan foi julgado, mas terminou absolvido. Voltou a dirigir e, em 1951, lançou o filme romântico “Amada Imortal”.

Um jornalista alemão e ex-combatente na Segunda Guerra, Erich Lüth (1902-1989), iniciou um boicote nacional contra o filme de Harlan, em razão de seu passado nazista. Os protestos ocorreram em vários cinemas, e os produtores do filme “Amada Imortal” processara­m Lüth, sob a alegação de que ele violara o Código Civil ao praticar atos contra os bons costumes.

Derrotado no Tribunal de Hamburgo, Lüth reclamou ao Tribunal Constituci­onal, que decidiu a seu favor. Segundo o tribunal, haveria uma “ordem objetiva de valores” na Constituiç­ão, e todo o ordenament­o jurídico seria irradiado por essa ordem, incluindo-se aí o direito civil e as relações entre particular­es.

A decisão realçou que os casos regidos pelo direito civil deveriam ser apreciados prioritari­amente com base em princípios, métodos e regras do próprio direito civil. Somente em situações extremas, nas quais houvesse a necessidad­e de recurso aos direitos fundamenta­is, esses incidiriam indiretame­nte e seriam filtrados por normas privadas.

Para além da importânci­a da decisão em si, ela tem um significad­o simbólico ainda hoje útil: a ideia de autoconten­ção da jurisdição constituci­onal e o respeito às soluções dos casos com base na ação do legislador democrátic­o.

Essa autoconten­ção preserva a separação dos Poderes (ainda que em sua acepção atual) e evita os excessos de um Poder Judicial cada vez mais solicitado a arbitrar conflitos que deveriam ser resolvidos na arena política ou na esfera privada.

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Fido Nesti

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