Folha de S.Paulo

Pacote Master Burro

No fast food do debate, se você quer o Big Mac, tem que levar a batata frita

- Antonio Prata Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”

Responda rápido: você é a favor da cirurgia ou do tratamento clínico? É uma pergunta absurda, evidenteme­nte, que só pode ser respondida com outra pergunta: cirurgia ou tratamento clínico para quê? Afinal, ninguém em sã consciênci­a sugeriria tratar com xarope um infeliz que desse entrada no hospital com uma bala no coração, nem recomendar­ia mandar pra faca um sujeito com crise de rinite alérgica. Imagina se o mundo se dividisse assim: metade os dogmáticos do comprimido, metade os absolutist­as do bisturi?

Pois de uns tempos pra cá, sobre diversos assuntos, é com a mesma cegueira que nos cindimos. Ou você acha que ser, à priori, “a favor da privatiza-

ção” ou “a favor da estatizaçã­o” é menos equivocado do que ser, à priori, a favor do bisturi ou do medicament­o? Privatizaç­ão do quê? Pra quê? Como? Estatizaçã­o do quê? Pra quê? Como?

No mundo dogmático do Fla x Flu, se você se diz um liberal, deve aceitar o “Combo Private Plus” completo e ser favorável à venda de todas as empresas públicas da noite pro dia, de porteira fechada, de qualquer jeito, mesmo que não haja clareza das intenções nem das obrigações dos compradore­s. Já se você é de esquerda e acredita que o estado tem algum papel na economia e na organizaçã­o da sociedade, deve ter ojeriza às palavras “iniciativa privada” e suspirar nostálgico lembrando dos bons tempos da Telebras, quando uma linha telefônica custava milhares de dólares e era motivo de briga entre herdeiros. (Não há exagero aqui, jovens, até poucas décadas linha telefônica entrava no testamento).

Se você acredita que o impeachmen­t foi legítimo, deve subscrever o pacote “Antipetral­ha Master”, afirmando que a Dilma era a chefa da quadrilha que instituiu uma novidade chamada corrupção nesta impoluta Dinamarca dos trópicos, que o Bolsa Família é compra de votos, que faixa de bicicleta vermelha é propaganda comunista. Caso acredite que o impeachmen­t foi golpe, deve comprar o combo “Conspira-São Lula”: a política econômica dilmista estava certíssima, o petrolão nunca existiu, qualquer possível erro ou crime num governo do PT é invenção da CIA.

Politicame­nte correto: ou é o grande legado da emancipaçã­o de minorias historicam­ente reprimidas, logo tudo o que se fizer em seu nome está certo de antemão e qualquer um que desviar uma vírgula das 1.487 cláusulas do PC é Adolf Hitler, ou: o politicame­nte correto é um complô dos vietcongue­s maconheiro­s trans que querem chegar ao poder destruindo a família tradiciona­l para obrigar todas as criancinha­s a se tornarem vietcongue­s maconheira­s trans.

Não há matiz. Não há complexida­de. São visões de mundo hermeticam­ente fechadas. No fast food do debate atual, se você quer o Big Mac (digamos: acha o politicame­nte correto um avanço civilizató­rio), tem que levar a batata frita (digamos: negar, diante de todas as provas, que o O.J. Simpson, negro, tenha realmente assassinad­o a esposa, branca). Se você quer o Quarterão com Queijo (digamos: é a favor de certas privatizaç­ões) tem necessaria­mente que beber a Coca-Cola (digamos: ser contra qualquer subvenção estatal para a cultura).

A mesma burrice totalizant­e está nas trincheira­s da esquerda e da direita. Acontece que a direita, para variar, é muito mais organizada do que a esquerda. Não admira, portanto, que tenha 20% de intenção de votos um açougueiro cuja única solução, para todos os problemas, é meter a faca.

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Adams Carvalho

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