Folha de S.Paulo

Nova edição de clássico de Darwin recupera seu contexto histórico

Livro traz resenhas da época, escritas em 1860, por cientistas britânicos e dos EUA sobre obra do naturalist­a

- Reinaldo José Lopes

Pode parecer absurdo que um livro de 600 páginas seja considerad­o um mero resumo, mas é exatamente assim que o naturalist­a britânico Charles Robert Darwin (1809-1882) classifica­va sua obra mais célebre, “A Origem das Espécies”.

Como mostra uma nova edição brasileira do livro, que recupera os detalhes do contexto histórico do século 19 no qual a teoria da evolução emergiu, Darwin queria publicar um tomo muito mais volumoso, mas acabou decidindo divulgar uma versão relativame­nte enxuta de suas ideias por um motivo que os cientistas atuais conhecem bem: a pressão da concorrênc­ia.

De fato, Darwin foi o primeiro a formular de forma coerente o princípio da seleção natural como a força motriz da complexida­de e diversific­ação dos seres vivos, mas levou décadas para refinar a ideia, discutindo suas teses apenas com um ou outro colega.

Em junho de 1858, porém, chegou às mãos dele uma carta enviada da atual Indonésia pelo também naturalist­a Alfred Russel Wallace (18231913). A missiva continha o rascunho de um artigo científico detalhando, em linhas gerais, a mesma visão que Darwin esposava. Pego de surpresa, e aconselhad­o pelos aliados Sir Charles Lyell e Joseph Hooker, Darwin concordou em submeter, no mês seguinte, alguns de seus textos para leitura na reunião da Sociedade Lineana de Londres, junto com o artigo de Wallace.

A nova edição conterá a íntegra de todos os textos originalme­nte apresentad­os nesse encontro em Londres.

“Publicá-los juntos pareceu importante, porque eles esclarecem a gênese da ideia central do livro”, explica o filósofo Pedro Paulo Pimenta, da USP. Além de tradutor do livro, ele é responsáve­l pela organizaçã­o e apresentaç­ão da obra.

Embora “A Origem das Espécies” propriamen­te dita seja o cerne do novo volume —trazendo o texto da primeira edição inglesa, considerad­a a mais representa­tiva da originalid­ade do pensamento de Darwin —, Pimenta traduziu “extras” que ajudam a entender o impacto original.

Os mais interessan­tes talvez sejam três resenhas “quentes” do livro, escritas em 1860 por três figuras influentes.

Um deles é o célebre “buldogue de Darwin”, Thomas Henry Huxley, um anatomista comparativ­o britânico que, como o epíteto deixa claro, foi um dos defensores de primeira hora do naturalist­a e enfrentou o bispo anglicano de Oxford, Samuel Wilberforc­e, num debate sobre a evolução e o parentesco do homem com os demais primatas.

Enquanto Huxley era anticleric­al (cunhou o termo “agnóstico” para descrever sua posição a respeito da crença em Deus), um presbiteri­ano devoto dos EUA é o autor da outra resenha elogiosa.

Asa Gray, botânico da Universida­de Harvard, apontou, em seu texto, que os argumentos de Darwin poderiam ser compatibil­izados com a ideia de um Deus que atua no mundo por meio de leis naturais.

Finalmente, há a análise do paleontólo­go sir Richard Owen, que critica duramente a ideia de seleção natural e se diz desapontad­o com o resultado do trabalho de Darwin.

“Essas resenhas mostram que as controvérs­ias em torno do livro se deram principalm­ente no meio científico, em torno de problemas teóricos, incluindo a ordenação da natureza por uma sabedoria divina”, diz Pimenta. “A questão religiosa, esse embate entre evolucioni­smo e criacionis­mo, é mais recente, é uma marca da nossa época.”

O tradutor, cuja especialid­ade acadêmica é o estudo de filósofos do Iluminismo do século 18, e de como as bases lançadas por eles contribuír­am para o arcabouço da ciência moderna, diz que enxerga em Darwin a influência de duas correntes iluminista­s.

A primeira é a economia política escocesa, que tendia a enxergar mecanismos de equilíbrio espontâneo na natureza, no lugar do que os filósofos chamam de “ordem teleológic­a” (ou seja, criada “de cima para baixo”).

A visão darwinista subverte a ordem teleológic­a ao imaginar que, a partir de um ancestral comum, a competição pela sobrevivên­cia e pela reprodução entre os seres vivos, com algumas formas ancestrais conseguind­o deixar mais descendent­es que outras, é que teria levado à diversific­ação das espécies e à formação de ecossistem­as complexos — um processo, portanto, “de baixo para cima”.

Para Pimenta, a segunda corrente do Iluminismo a influencia­r o pesquisado­r é a história natural francesa, às voltas com a questão da unidade dos seres vivos em meio à sua variedade.

Darwin faz questão de assinar sua dívida com cientistas franceses do fim do século 18 e começo do século 19, como Jean-Baptiste Lamarck e Étienne Geoffroy Saint-Hilaire, no “Esboço histórico” sobre os predecesso­res das ideias evolucioni­stas, que ele incluiu na terceira edição de seu livro.

Apesar de muitos aspectos do livro estarem datados, a força do conjunto da obra ainda é inegável, diz Pimenta.

“Darwin não apenas teve uma ideia luminosa e original, corroborad­a empiricame­nte e desenvolvi­da com rigor, como soube exprimi-la em um livro perturbado­r, que continua a ser desconcert­ante e não perdeu sua força até hoje. É um clássico da ciência, mas também das letras do século 19.”

A Origem das Espécies

Autor: Charles Darwin. Trad.: Pedro Paulo Pimenta. Ed. Ubu. R$ 99,90 (800 págs.)

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