O fim da festa (ou a ressaca)
Grande largada para o Oscar, Festival de Toronto começa nesta semana com filmes que ecoam os desajustes do mundo, entre eles tramas duras sobre racismo, drogas e resistência política agora no centro do prêmio do cinema hollywoodiano
suscetível a humores de uma indústria cautelosa, decanta o zeitgeist com agilidade de mastodonte se comparada a outras formas de expressão.
Um exemplo é “The Public”. A sátira de Emilio Estevez, encenada numa biblioteca, reúne sem-teto e funcionários públicos que se impõem contra a ingerência do poder econômico sobre o Estado — um ato de desobediência civil que galvaniza o coro dos protestos Occupy, de 2011.
Mesmo quando transposto à Escócia do século 13, como em “Legítimo Rei”, o tema da revolta dos despossuídos persiste. É o caso dessa obra de David Mackenzie (“A Qualquer Custo”) sobre um monarca fora da lei (Chris Pine) que enfrenta a dominação inglesa.
O tipo rebelado contra o sistema, aliás, parece estar em alta. A protagonista de “Can You Ever Forgive Me?”, vivida pela comediante Melissa McCarthy, é uma escritora que, depois de acumular fracassos, decide virar o jogo se tornando uma falsificadora literária.
“Galveston” põe em cena um gângster ameaçado por um sujeito mais poderoso que vaga entre motéis baratos e casebres miseráveis da cidade texana que dá nome à obra.
Em ambos os casos, os protagonistas são vozes de uma maioria silenciosa, que perdeu a crença nas instituições.
O eco da crise dos opioides, que se alastra pelas grandes cidades americanas, está em “A Beautiful Boy”, história sobre um pai (Steve Carrell) que lida com o vício do filho (Timothée Chalamet) na produção que pode descolar indicações ao Oscar para os dois atores.
Adição também está em “A Million Little Pieces”, que aborda o tortuoso processo de reabilitação de um escritor viciado. “White Boy Rick”, sobre um adolescente que prestou serviços de informante do FBI e depois se valeu do knowhow para se firmar, ele mesmo, como traficante é outro a focar carreiras de cocaína.
Esse último é mais uma entre as múltiplas obras de Toronto com a chancela de ter sido inspirada em histórias reais, prova de que talvez o escapismo possa estar démodé.
Também se ancora na realidade a trama de “Boy Erased”, que trata do filho gay de um pastor batista, este interpretado por Russell Crowe, enviado a um programa de “conversão” de orientação sexual.
Nenhum outro assunto, contudo, rende tantos frutos quanto as tensões raciais.
Ao menos quatro dos títulos orbitam essa questão, incluindo “The Hate U Give”, acrônimo de “thug”, uma gíria do rap para valentões briguentos.
Depois de vencer o Oscar com “Moonlight”, Barry Jenkins cavouca a obra de James Baldwin,grande voz na literatura do movimento dos direitos civis. “If Beale Street Could Talk”, baseado no romance homônimo, narra a história de um homem negro, falsamente acusado de estupro, no Harlem da década de 1970.
Famoso por besteiróis como “Quem Vai Ficar com Mary?” e “O Amor É Cego”, Peter Farrelly roda seu primeiro drama, “The Green Book”. Nele, Viggo Mortensen faz um chofer ítalo-americano que conduz um pianista negro (Mahershala Ali) pelo sul racista dos Estados Unidos nos anos 1960.
“Skin”, de Guy Nattiv, trará à tona os vultos da marcha na cidade de Charlottesville com a história de um rapaz criado por supremacistas brancos.
A polarização fez ressurgir até mesmo Michael Moore, o pouco sutil documentarista que andava menos prolífico nos anos Obama, mas que agora volta a disparar farpas.
Com “Fahrenheit 11/9” (9 de novembro, segundo o padrão da língua inglesa), ele quer explorar a era Trump. A data remete à eleição do republicano. Partindo de Moore, deve resultar numa peça mais fanfarrona do que contundente.
Não que toda a safra de Toronto seja assim tão áspera.
Damien Chazelle, do romântico “La La Land”, mira a Lua com “O Primeiro Homem”, história da Apolo 11, com Ryan Gosling como Neil Armstrong. Também é para o espaço que Claire Denis envia Robert Pattinson em “High Life”.
Já Bradley Cooper dirige e contracena com Lady Gaga no terceiro remake do drama musical “Nasce uma Estrela”. A única resenha publicada compara o esforço do diretor ao de Scorsese e Cassavetes.
A julgar por essas comparações, mesmo quando no terreno do musical, a novíssima Hollywood estará menos afinada com cenários opulentos e mais com a crueza das ruas. Leia mais na pág.
Os desenhos que restaram não traduzem as reais dimensões do drama. São linhas soltas sobre papel amarelado que Hélio Oiticica rabiscou num dos momentos mais raivosos da história do país, forjando a planta arquitetônica, seca e esquemática, do momento em que a euforia cede ao terror.
O artista, abalado pela execução de um amigo na ditadura militar, pensou em montar uma tenda de circo em praça pública. Dentro dela, “música de discoteca” tocaria em altíssimo volume e luzes estroboscópicas ofuscariam a vista, escondendo o perigo que se avolumava do lado de fora.
No happening idealizado —e nunca realizado— por ele, os festeiros seriam surpreendidos por uma roda de homens a cavalo. O assalto dos vigilantes, algo entre bandidos e a encarnação das polícias de um regime com apreço pela tortura, abafaria os uivos hedonistas da celebração.
Oiticica estetizava ali a agonia da festa bem no rastro do AI-5, o decreto que marcou o recrudescimento da ditadura. Seus estudos para o que chamou, sem rodeios, de “Ronda da Morte” reaparecem agora numa exposição sobre a arte de oposição aos generais surgida na ressaca do ano de 1968.
Quase cinco décadas depois da canetada de Costa e Silva naquele mês de dezembro, o Instituto Tomie Ohtake abre nesta semana uma exposição que, sem pendor algum para a sutileza, confronta os idos dos anos de chumbo com o levante de grupos simpáticos ao fascismo que vêm se enraizando e florescendo pelo mundo.
Mas tanto então quanto agora a visão desencantada e desesperada da atualidade se manifesta na imagem de uma festa que chega ao fim já beirando o abismo físico e moral —no lugar de um estrondo, só um murmúrio surdo.
No mais deslumbrante exemplo dessa estética da ressaca, a peça “Ítaca”, recémencenada em São Paulo pela diretora Christiane Jatahy, leva ao teatro a ruína líquida e solvente de uma balada que descamba para a violência —o palco do espetáculo vai afundando na água à medida que os atritos se acirram.
Mergulhados num pântano que demora a tomar corpo em cena, os atores cada vez mais encharcados, sobrecarregados pelo peso das roupas, vagam pelo cenário de copos vazios e cinzeiros já cheios.
Tanto os móveis no palco, de um decadentismo pequeno-burguês, quanto os looks da noite flagrados em plena dissolução, do hipsterismo dos millennials aos farrapos de uma guerra, escancaram as marcas dessa tragédia íntima.
Jatahy atualizou a “Odisseia” de Homero para falar sobre a crise dos refugiados na Europa e a disputa pelo poder num Brasil cindido às vésperas das eleições presidenciais, mas verteu o drama para um quadro azedo de violências domésticas que afloram no calor da noite, embaladas pelo álcool entornado das taças.
O ritmo da peça, aliás, espelha a sucessão de estágios da embriaguez, uma escalada que vai da alegria que lubrifica os encontros a um estado feérico de dor e paranoia.
Nesse sentido, o naufrágio espiritual flagrado em “Ítaca” evoca tanto um barco de miseráveis à deriva, da “Balsa da Medusa” de Géricault aos refugiados da atualidade, quanto a culpa burguesa — anestesiada por bons vinhos— diante de um mundo em frangalhos.
O álcool, ou o que sobrou dele, também remete à melancolia de um fim de festa em “Epílogo”, uma das instalações que a artista Valeska Soares levou à sua retrospectiva em cartaz na Pina Estação.
Numa das salas do museu do centro paulistano, velhas mesas com tampo espelhado servem de descanso para centenas de taças, copos e jarras, alguns deles brilhando no sol de inverno que entra pelas janelas com as últimas gotas de champanhe, rosé e outros drinques abandonados.
Uma inclinação romântica, ou lamento por laços desfeitos, atravessa toda a obra dessa artista. As bordas douradas e padrões florais cavados no cristal das taças multiplicados ali pelos espelhos dão ar de joia frágil aos escombros de uma comemoração fugaz.
Esse teatro estático de Soares, que na abertura da mostra deixou que convidados provassem as bebidas arranjadas ali e largassem os restos como parte central de seu trabalho, acaba se tornando uma operação nostálgica —um antídoto reluzente à erosão dos sentidos provocada pela festa.
Quem passeia pelas galerias do museu se depara com as provas de um encontro que já não é mais, a colisão de corpos e desejos materializada num acúmulo inerte de transparências e brilhos sobre as mesas.
O cinema, a exemplo do próximo Festival de Toronto, também reflete essa sensação de ressaca. Mesmo produções agora em cartaz entraram na onda, como “A Festa”, obra da diretora britânica Sally Potter.
No filme em preto e branco, um jantar entre amigos marcado para celebrar a nomeação da anfitriã para um alto cargo no governo aos poucos caminha para o teatro do absurdo, com revelações de intrigas, doenças e infidelidades.
Enquanto os conflitos emergem, a comida no forno pega fogo, a rolha rebelde de uma garrafa de champanhe estoura vidraças e alguns dos convidados quase trocam tiros.
Na cultura atual, a festa aos poucos se torna metáfora para uma zona limítrofe entre a ordem e o caos, o ponto de passagem para um estado de nervos como fios desencapados.