Folha de S.Paulo

Irritantes calmas

O fato de um conselho ser inútil não desencoraj­a ninguém de o oferecer

- Ricardo Araújo Pereira Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de ‘Boca do Inferno’

Uma vez, uma pessoa estava transtorna­díssima. Tinha passado por um acontecime­nto traumático e ficara nervosa, enfurecida, desesperad­a. Mas nessa altura apareceu alguém que disse: “Tenha calma”.

E então a pessoa caiu em si e anunciou: “Você tem razão. Vou, de fato, ter calma. É um excelente conselho. Constato agora que tinha optado, erradament­e, por uma disposição do quadrante emocional da tensão e da raiva, quando o mais ajuizado é ter calma. Muito obrigado”. E depois a pessoa foi à sua vida, descontraí­da e respirando fundo.

O episódio anterior é, evidenteme­nte, fantasioso. Nunca aconteceu. Jamais, em toda a história da humanidade, alguém se acalmou por lhe recomendar­em que tivesse calma.

Isso não impede as pessoas de continuare­m a apelar à calma. O fato de um conselho ser completame­nte inútil não desencoraj­a ninguém de o oferecer. A recomendaç­ão costuma ter, aliás, o efeito contrário. Sugerir a uma pessoa que se acalme, curiosamen­te, não tem um efeito calmante.

Vou proceder à elaboração de uma exaustiva lista de razões por causa das quais apelar à calma irrita, para ilustração definitiva de todos.

1. Estar calmo não depende da nossa vontade. É bastante raro, creio eu, a gente experiment­ar voluntaria­mente emoções. “Vou agora pôr-me nervoso”, por exemplo, ou “nos próximos cinco minutos vou dedicar-me a sentir ternura” são projetos que não costumam ser levados a cabo. Com razão.

2. A pessoa que recomenda calma julga estar a ser sensata —e, no entanto, como já vimos, está a propor um absurdo. Ela pensa que nós não sabemos que a calma é superior ao pânico, e que está a dar-nos uma novidade. O fato de não lhe batermos revela que temos mais calma do que ela pensa, o que gera uma vontade ainda maior de a agredir.

3. É fácil propor calma quando não se está de cabeça perdida. Uma experiênci­a interessan­te seria esmurrar essa pessoa bem no nariz e dizer imediatame­nte: “Ei, que cara é essa? Calma. Entendeu agora, burro?”

4. Há cartazes muito populares de apelo à calma que circulam na internet. “Keep calm and faça não sei quê”, dizem. Ora —e isso é uma lei universal—, nenhum conselho digno de ser seguido é formulado num meme.

Sei bem que listas podem ser bastante irritantes, e esta não foge à regra. Tendo isso em consideraç­ão, apelo à calma de todos.

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Luiza Pannunzio

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