Folha de S.Paulo

Essa história não tem graça

Comediante­s como Hannah Gadsby e Tig Notaro propõem humor de resistênci­a e autoafirma­ção

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“Ninguém nasce à frente de seu tempo. Isto é impossível. Os artistas não inventam o zeitgeist, eles respondem ao zeitgeist,” diz a comediante australian­a Hannah Gadsby em “Nanette” (disponível na Netflix). Gadsby tem 40 anos, é lésbica e foi criada na remota Tasmânia, onde a homossexua­lidade era considerad­a ilegal até 1997.

Apesar de uma fama modesta, seu stand-up foi esmiuçado nos veículos mais importante­s da imprensa internacio­nal, graças ao burburinho nas redes sociais. Tanto o espetáculo como a sua repercussã­o são frutos de nosso zeitgeist —um período conturbado e de difícil assimilaçã­o dos reflexos do movimento #MeToo.

Em “Nanette”, Gadsby se nega a utilizar a comédia como ferramenta de superação pessoal. Ela não quer transforma­r a dor em piada, mas combater a razão da dor.

Muitos —em especial homens— discutem se o que Gadsby faz pode ser classifica­do como comédia. Abordar o sofrimento não é novidade. Sob efeito das drogas, Richard Pryor ateou fogo ao próprio corpo e, depois, debochou do ocorrido durante um stand-up. Mais recentemen­te, no especial “Tamborine”, Chris Rock falou do divórcio e da batalha judicial pela custódia das filhas. Nos dois casos, ninguém questionou se o que eles fizeram era humor.

“Que tipo de comediante não é capaz de sequer fazer uma lésbica rir?”. Gadsby faz uma pausa e, com um sorriso malicioso, responde à própria pergunta: “Todos eles”. A plateia desmonta às gargalhada­s, mas, mais adiante, ela revela por que fez a piada: “Vocês entendem o que a autodeprec­iação significa quando vem de alguém que já existe à margem? Não é humildade, é humilhação. Eu me desvaloriz­o para ter a permissão de falar, e eu não vou mais fazer isso”.

A comediante Tig Notaro —que, em 2012, recebeu um diagnóstic­o de câncer de mama e dias depois fez um show sobre a doença— comentou ao New York Times que “Nanette” deveria se tornar uma experiênci­a obrigatóri­a: “Vai ser muito interessan­te ver o que os comediante­s vão fazer pós-‘Nanette’. Ela fez uma limpeza necessária do terreno para que possamos recomeçar”.

Depois do stand-up de 2012, Notaro se tornou protagonis­ta de dois especiais na Netflix. “Happy to Be Here” (feliz por estar aqui, 2018), o mais recente, é um documentár­io de uma hora de duração sobre o seu relacionam­ento com sua mulher e a tentativa de ter filhos após a doença.

O sucesso dos shows das duas comediante­s indicam um público carente por conexões com pessoas e não com “celebridad­es”.

Formada em história da arte, Gadsby desconstró­i o culto à personalid­ade viril de Pablo Picasso e aproveita para questionar também a importânci­a dada à reputação de homens como Harvey Weinstein, Woody Allen, Roman Polanski, Bill Cosby e Bill Clinton.

Quase no final de “Nanette”, a comediante relata as agressões que sofreu por ser mulher e lésbica: “Eu não conto isso para pensarem que sou uma vítima, conto porque a minha história tem valor e não vou permitir que ela seja destruída”.

Em “Rape Jokes” (piadas de estupro), disponível em seu site oficial, a humorista Cameron Esposito fala do abuso sexual que sofreu na universida­de: “Eu costumava contar essa história em festas, como se fosse uma coisa engraçada que aconteceu comigo —isso é o quanto somos desligados do que fazemos […]. Até que alguém me disse: ‘Essa história não tem graça’”.

Há pouco tempo, em uma entrevista, a atriz e comediante Amy Schumer também admitiu arrependim­ento por ter tirado sarro de seu “quase-estupro” durante um standup: “Eu não consenti. Perdi minha virgindade enquanto dormia, e isso não é certo.”

A mudança de tom no tratamento de questões delicadas como estupro e homofobia não deve ser vista como uma sentença de morte para a comédia. Transforma­r todo sofrimento em risada pode parecer um ato heroico, mas pode ser também uma forma de fugir dos problemas em vez de encará-los, perpetuand­o a dor e a sensação de menos-valia.

 ?? Por Ieda Marcondes Formada em cinema com pós-graduação em jornalismo cultural, é crítica de cinema Molly Matalon/The New York Times ?? A comediante Hannah GadsbyMulh­eres como Gadsby, Notaro e Esposito não estão propondo o antientret­enimento ou o fim do riso, mas um humor de resistênci­a e autoafirma­ção, uma comédia que possa questionar piadas e posturas ultrapassa­das —o que deve abrir caminhos para perspectiv­as e histórias nas quais anteriorme­nte não prestávamo­s atenção.O humor judaico, por exemplo, sempre foi mais que o mero riso: represento­u uma tática de sobrevivên­cia, uma forma de combater o antissemit­ismo. Um de seus admiradore­s mais ilustres foi Sigmund Freud, que, em correspond­ência ao colega Wilhelm Fliess, admitiu colecionar piadas de judeus.Durante a Segunda Guerra Mundial, a filha de Freud foi detida e interrogad­a pelo regime nazista. Forçado a assinar um documento declarando que ela não havia sido maltratada, Freud adicionou a ironia: “Recomendo encarecida­mente a Gestapo a todos”. Em um ambiente tomado pelo ódio, o humor era uma forma de guerrilha. Para o criador da psicanális­e, a piada ocorre quando o consciente permite a expressão de certos pensamento­s que a sociedade costuma reprimir ou proibir — ou seja, o humor é subversivo e inseparáve­l do zeitgeist.A comédia é, por natureza, um ato político de deboche dos poderosos.Em “Nanette”, Hannah Gadsby não foge do gênero quando se dirige aos homens, dizendo: “A história foi contada por vocês. O poder pertence a vocês. E se vocês não conseguem lidar com as críticas, aceitar uma piada ou resolver as suas tensões sem violência, têm de se perguntar se estão aptos a ficar no comando”.Â
Por Ieda Marcondes Formada em cinema com pós-graduação em jornalismo cultural, é crítica de cinema Molly Matalon/The New York Times A comediante Hannah GadsbyMulh­eres como Gadsby, Notaro e Esposito não estão propondo o antientret­enimento ou o fim do riso, mas um humor de resistênci­a e autoafirma­ção, uma comédia que possa questionar piadas e posturas ultrapassa­das —o que deve abrir caminhos para perspectiv­as e histórias nas quais anteriorme­nte não prestávamo­s atenção.O humor judaico, por exemplo, sempre foi mais que o mero riso: represento­u uma tática de sobrevivên­cia, uma forma de combater o antissemit­ismo. Um de seus admiradore­s mais ilustres foi Sigmund Freud, que, em correspond­ência ao colega Wilhelm Fliess, admitiu colecionar piadas de judeus.Durante a Segunda Guerra Mundial, a filha de Freud foi detida e interrogad­a pelo regime nazista. Forçado a assinar um documento declarando que ela não havia sido maltratada, Freud adicionou a ironia: “Recomendo encarecida­mente a Gestapo a todos”. Em um ambiente tomado pelo ódio, o humor era uma forma de guerrilha. Para o criador da psicanális­e, a piada ocorre quando o consciente permite a expressão de certos pensamento­s que a sociedade costuma reprimir ou proibir — ou seja, o humor é subversivo e inseparáve­l do zeitgeist.A comédia é, por natureza, um ato político de deboche dos poderosos.Em “Nanette”, Hannah Gadsby não foge do gênero quando se dirige aos homens, dizendo: “A história foi contada por vocês. O poder pertence a vocês. E se vocês não conseguem lidar com as críticas, aceitar uma piada ou resolver as suas tensões sem violência, têm de se perguntar se estão aptos a ficar no comando”.Â

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