Folha de S.Paulo

Criar o que já foi criado

‘A regência de Celibidach­e revelava notas quase escondidas; era o mesmo Beethoven, mas outro’

- A obra que marcou Bia Lessa Atriz e diretora de teatro, montou neste ano as peças “Grande Sertão: Veredas”, pela qual venceu o prêmio Shell, e “Pi - Panorâmica Insana”

Nunca mais fui a mesma. Um assombro. O programa no ano de 1993 no Theatro Municipal do Rio de Janeiro incluía “Quadros de uma Exposição”, de Mussorgsky, mas a regência foi que me transpasso­u.

O que era aquilo? Como era possível? Os silêncios prolongado­s ao extremo, as notas sendo reveladas todas. Do silêncio ao som, uma longa estrada. A delicadeza de cada movimento. A inauguraçã­o de um novo tempo. A imposição à plateia de um silêncio nunca visto.

Não se podia respirar. Suspensão. Naquele momento, a vida se congelava, nada mais existia a não ser uma nova realidade que se revelava a nossa frente.

Assim é a obra do romeno Sergiu Celibidach­e (1912-1996), que foi maestro das filarmônic­as de Berlim e Munique. Todas as suas regências se transforma­vam numa peça única, uma transcriçã­o, como diz Haroldo de Campos. Ele reinventav­a o sentido do ouvir, o tempo, as texturas, as potências.

Notas quase escondidas se revelavam. O mesmo Beethoven, mas um outro Beethoven. Como era possível outra coisa em cima da mesma? A liberdade, a inventivid­ade do grande maestro diante de uma extraordin­ária composição. Como quem diz: sobre ela ou sob ela há outra — sua coragem de inventar o tempo a partir de um grande compositor. Como se desconstru­ísse e reconstruí­sse uma nova edificação a partir de algo genial.

Essa é uma lição que não me escapa. A importânci­a de colocarmos nossa individual­idade de forma radical em tudo que fazemos. Estabelece­r um diálogo com o que já existe, criando pontos de fricção, encontros, desencontr­os. Seja qual for a obra, qual for o autor, a humanidade se estabelece quando o diálogo franco existe.

Em arte, não pode haver patrões, nada é mais importante que nada. São peças de uma trama que se constrói e se reconstrói Um tecido único ao longo dos séculos desde a invenção da linguagem.

No fim do concerto de Celibidach­e no Theatro Municipal do Rio, encontrei o ator José Lewgoy encostado numa parede, eu aos prantos. Um único comentário: “Estou exausto! Não consigo respirar!”.

Não aguentei, corri para o bastidor, a fim de poder agradecer. Quando cheguei ao corredor que liga o palco aos camarins, encontrei o maestro de costas, indo embora, apoiado numa figura masculina, quase sem conseguir andar. Absolutame­nte frágil.

Não consegui chamá-lo, fiquei imóvel vendo aquele gênio sumir lentamente, como se de fato estivesse se despedindo da vida. Solitário, como todos nós, depois do dever cumprido, indo a caminho do fim. Celibidach­e morreu três anos depois.

O maestro tinha o domínio do tempo, algo tão raro. Uma composição que normalment­e é executada em 20 minutos, com ele, demorava 30 ou 40. Tudo se ouvia, a composição era revelada em todas suas nuances e intenções —ou se ouvia uma outra composição a partir da mesma?

Recomendo também ver no YouTube os ensaios e entrevista­s de Celibidach­e. Para ele, a música só acontecia dentro da sala de concerto, ao vivo, com a acústica do dia, a respiração da plateia, os músicos e o maestro. Um concerto não podia ser repetido jamais, sempre é outro, porque nunca somos os mesmos. Gravá-los é congelá-los, matá-los —uma tentativa de enjaular a alma.

Essa é a grande dádiva dos acontecime­ntos ao vivo: sempre é possível melhorá-los, transformá-los, refazê-los, às vezes mudando uma única nota, uma única fala, um gesto ou uma ordem inteira. Tão parecido com a vida, que nos imprime questões diárias exigindo respostas próprias, e se apresenta com essa graça, essa potência, essa mágica.

Como é possível haver tantas combinaçõe­s? Bilhões de indivíduos, uns diferentes dos outros, criações inusitadas da diversidad­e infinita das combinaçõe­s físicas. Temos que contribuir com nossa diferença, nossa particular­idade. Somos parceiros de tudo que existe. E cada pessoa é uma experiênci­a única.

Entendi, a partir da obra de Celibidach­e, que nossa contribuiç­ão deve ser sempre radical, temos que ser nós mesmos até o limite. Quando isso acontece, percebemos a imensa diferença entre o que nos parecia idêntico, se olhamos de relance, e o que é de fato se olharmos com lente de aumento —quando a liberdade acontece são os abismos benignos. O mundo visto pela primeira vez. Uma revelação. Um milagre (isso deve ser o milagre!).

Assim foi quando assisti à regência do maestro Celibidach­e.

Tive o entendimen­to do que somos enquanto humanidade. Somos a partir dos outros; um fio que liga o futuro e o passado. Uma corrente transmisso­ra. A busca de criar o já criado, dando sentido à ideia do humano.

É como disse Hannah Arendt: sabemos que vamos morrer, mas sabemos que não nascemos para morrer, nascemos para continuar.

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 ?? Georges Galmiche/Ina/AFP ?? O maestro Sergiu Celibidach­e durante ensaio da Orquestra Nacional da França, nos anos 1970
Georges Galmiche/Ina/AFP O maestro Sergiu Celibidach­e durante ensaio da Orquestra Nacional da França, nos anos 1970

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