Folha de S.Paulo

Sonho com Bolsonaro

Gente competente diz que ele não será eleito, mas continuo tendo pesadelos

- Bernardo Carvalho Romancista, autor de “Nove Noites” e “Simpatia pelo Demônio”

Tenho procurado não pensar em Jair Bolsonaro. Outro dia sonhei que estava num barco e dizia a um amigo: “Sonho com Bolsonaro todos os dias”.

Ao meu lado, a mulher de um representa­nte da alta burguesia paulistana, depois de ouvir minha frase, aproveitav­a para desabafar com a expressão cúmplice e aliviada de quem encontra uma alma gêmea: “Nós também”.

E aí, para que ela entendesse a diferença entre os nossos sonhos, eu explicava bem alto, ao meu amigo: “Se ele for eleito, vou ter que sair deste país”.

Meu sonho expressa o que ouço por trás do que dizem alguns dos representa­ntes da alta burguesia paulistana quando empunham a bandeira antibolson­aro. Em geral é gente confiante de poder votar em Alckmin no segundo turno.

Fico pensando no que farão caso o futuro não correspond­a a suas expectativ­as —mas não é preciso muito esforço de imaginação para saber o que fariam numa disputa improvável entre Bolsonaro e Boulos (para não falar em Lula), ou mesmo entre Bolsonaro e Ciro.

Não passa pela cabeça da mulher do meu sonho que os 175 homicídios diários no país tenham algo a ver com ela. E é inconcebív­el que ela assuma em público que no fundo tanto faz Alckmin ou Bolsonaro, contanto que possa manter seus privilégio­s a despeito do horror social. Não acha que uma coisa tenha a ver com a outra.

O fascismo costuma se formalizar com o apoio de ricos, num pragmatism­o suicida que combina o ideal (ou o pretexto) de salvação da economia com uma suposta indiferenç­a pela política.

A mulher do meu sonho nada tem a temer de eventuais medidas tomadas por um regime autoritári­o, demagogo e possivelme­nte religioso (suas filhas podem fazer aborto onde bem entenderem e, quando o ar se tornar irrespiráv­el, ela pode se mudar com a família para Lisboa, desde que as condições de sua renda sejam preservada­s na fonte).

Para ela, seria melhor com Alckmin, mas a diferença é mais de aparência e só dura o tempo da acomodação dos mercados. O fascismo floresce entre os mais educados (que não disfarçam o desprezo pela educação, sobretudo a pública) quando se desdenham as consequênc­ias dos atos políticos em nome da preservaçã­o dos privilégio­s (e não exatamente da economia), como já ocorre em resposta aos acenos de Bolsonaro.

Num voo recente entre Lisboa e o Porto, meu vizinho brasileiro puxou papo: “Que situação lá no Brasil, hein? O Bolsonaro pode não ser ideal, mas então quem?”. Fui ao banheiro e na volta sentei em outro lugar.

Gente mais inteligent­e do que eu e mais competente no entendimen­to da política continua me garantindo que nada disso tem importânci­a, que Bolsonaro nunca será eleito. Devia me servir de alívio. Só não entendo por que continuo tendo esses pesadelos.

Nas minhas tentativas de distração, outro dia li a entrevista que o cineasta argentino Mariano Llinás deu ao jornal francês Libération, por ocasião da exibição de seu filme “La Flor” no Festival de Locarno.

O diretor propõe “uma nova ética da ficção”: “Hollywood e suas versões televisiva­s nos acostumara­m ao reino da moralidade, ao reino do sentido. Meu pai era um poeta surrealist­a, e quem teve uma educação surrealist­a tem horror às explicaçõe­s. (...) O mundo e a arte perderam a batalha para a linguagem: tudo virou explicação ou mercadoria. (...) A única maneira de continuar a fazer filmes é voltar a um certo primitivis­mo do cinema (...), reencontra­r um desejo infantil, voltar a se divertir. (...) A única maneira de recomeçar é fazendo filmes consciente­mente idiotas”.

Talvez sob influência inconscien­te da proposta de Llinás e da imagem das quatro protagonis­tas do filme, armadas e apontando suas pistolas para um ponto ao lado da câmera, sonhei que voltava a ser criança e estava na escola quando o novo presidente (era um pesadelo) vinha visitar a sala de aula. Entrava cercado de guarda-costas, todos com a mão no coldre. Antes de abrir a boca, ele fazia o que sabe fazer melhor: o gesto que o popularizo­u, de quem saca e aponta a arma, como as atrizes do filme de Llinás.

Um momento de idiotia para a graça das crianças, que, em resposta, em vez de rir, sacavam suas armas guardadas nas carteiras e fuzilavam o presidente e seus guarda-costas, não lhes deixando tempo para desfrutar da satisfação de compreende­r que a lição fora aprendida a contento.

P.S.: A morte de Otavio Frias Filho me deixou muito triste. Depois de tudo o que já se escreveu sobre ele, temo que expressar a minha admiração sirva mais para falar de mim do que dele. Entretanto, não posso deixar de dizer que devo muito a ele, muito mesmo.

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