Folha de S.Paulo

Temos a obrigação ética de aliviar o sofrimento dos animais

[resumo] Autor argumenta, com base no pensamento do filósofo Peter Singer, que não há diferença relevante entre ajudar um indivíduo humano e um de outra espécie capaz de sentir dor

- Por Steven Nadler É professor de filosofia na Universida­de de Wisconsin em Madison. É autor de “Um Livro Forjado no Inferno” (ed. Três Estrelas) Saul Gervásio Publicitár­io Texto publicado originalme­nte no site Aeon.co. Tradução de Paulo Migliacci

No inverno passado, imagens inesquecív­eis circularam pela internet mostrando um urso polar faminto que enfrentava dificuldad­e para sobreviver em seu território de caça no Ártico. Por conta do aqueciment­o global, o gelo estava fino, e o suprimento de comida era escasso.

O vídeo despertou grande compaixão em relação ao sofrimento da pobre criatura e revigorou os apelos por esforços mais vigorosos de combate à mudança do clima —e com toda razão.

Esses esforços de proteção à fauna costumam se concentrar em determinad­as espécies e nos efeitos que a mudança do clima provocada pelos seres humanos exerce sobre sua sobrevivên­cia e bem-estar, já que os ecossistem­as dos quais os animais dependem passam por mudanças drásticas. Assim, deveríamos salvar o urso polar —ou seja, sua espécie— fazendo todo o possível para preservar seu ecossistem­a natural. Defendo totalmente esse tipo de ativismo. Quem quer que se preocupe com o futuro de nosso planeta e de seus habitantes deveria fazer o mesmo.

Mas eu também gostaria de fazer um apelo não só em benefício dos ursos polares que vivem na natureza em geral, e sim em nome desse urso polar específico —o urso do vídeo.

Em seu livro “Libertação Animal” (1975), o filósofo Peter Singer argumenta que é moralmente errado tratar os animais não humanos de certas maneiras desumanas. Para ser exato, não deveríamos tratá-los de maneiras que os façam sofrer. Como seres sencientes —capazes de experiment­ar prazer e dor—, eles têm um interesse evidente e defensável em serem poupados de dor e sofrimento desnecessá­rios.

Ao discutir quem e o que deveria ser incluído em nossa esfera de preocupaçã­o moral, Singer cita Jeremy Bentham, um filósofo do século 19: “A questão não é se eles são capazes de raciocinar ou se são capazes de falar, mas se são capazes de sofrer”.

Para rebater o que ele define como suposições baseadas em “especiesis­mo”, Singer argumenta que não pode existir justificat­iva moral para encarar a dor que os animais sentem como menos importante que uma dor de intensidad­e semelhante sentida por um ser humano.

Ele admite que pode haver outras razões para dar primazia à vida humana ante a vida animal. Mas, na ausência de consideraç­ões convincent­es e baseadas em princípios, deveríamos evitar causar sofrimento a todas as criaturas capazes de experiment­á-lo.

Parece-me claro que, à luz do aqueciment­o global, é preciso emendar os argumentos de Singer. De acordo com sua aplicação da doutrina utilitária ao bem-estar dos animais não humanos, o sofrimento deles deve ser considerad­o quando ponderamos o valor utilitário de diversas ações e práticas. Mas as implicaçõe­s da mudança no clima significam que o escopo das ações que são proscritas —e, especialme­nte, prescritas— com base na consideraç­ão do sofrimento animal deve ser expandido.

Do uso da doutrina em questão por Singer deveria derivar não só que não devemos, especifica­mente, tratar animais de determinad­as maneiras, mas também que temos a obrigação moral de aliviar seu sofrimento, sempre que pudermos fazê-lo sem perda comparável de nossa parte. Até onde sei, Singer não propõe de modo explícito a extensão dessa obrigação aos animais não humanos, mas seus princípios a indicam.

No ensaio “Famine, affluence, and morality” (fome, abundância e moralidade), de 1972, ele propõe que temos a obrigação moral de prover assistênci­a a outros seres humanos que vivam na pobreza e a vítimas de desastres naturais ou que foram causados pelo homem, não importa a que distância geográfica estejam de nós, desde que nossa contribuiç­ão não nos cause perdas significat­ivas (por exemplo, uma pessoa não tem a obrigação de se empobrecer para aliviar a pobreza dos outros).

“Se está em nosso poder impedir que algo de ruim aconteça, sem que para isso precisemos sacrificar qualquer coisa de importânci­a moral comparável, temos a obrigação moral de fazê-lo. Por ‘precisemos sacrificar qualquer coisa de importânci­a moral comparável’ quero dizer causar qualquer outra coisa comparavel­mente tão ruim, ou fazer algo de intrinseca­mente errado, ou deixar de promover um dado bem moral, comparável em importânci­a à coisa ruim que podemos prevenir.”

O princípio “incontrove­rso” do altruísmo, diz Singer, “requer apenas que impeçamos o mal... e só exige isso de nós quando pudermos fazê-lo sem sacrificar alguma coisa de importânci­a comparável, do ponto de vista moral”. Assim, não existe desculpa moral para não fazemos o que pudermos para aliviar o sofrimento de pessoas que estejam morrendo por falta de comida, abrigo e assistênci­a médica, não importa sua proximidad­e ou sua distância de nós, em termos geográfico­s.

O fato de que estejam a milhares de quilômetro­s de distância, por exemplo, não significa que não tenhamos a obrigação de doar a uma agência internacio­nal de assistênci­a o dinheiro que de outra forma gas- taríamos em um produto de luxo.

À luz das visões gerais de Singer sobre a consideraç­ão moral devida ao sofrimento de animais não humanos, a extensão do princípio do altruísmo a essas criaturas —não a espécies, mas a animais individuai­s— parece ser trivial. Afinal, uma vez mais, não existe diferença moralmente relevante em termos de capacidade de sofrer. Em outras palavras, temos a obrigação de ajudar o urso polar faminto.

O que aconteceu ao animal em questão? Aqueles que testemunha­ram seu sofrimento interviera­m? O câmera e sua equipe tomaram alguma providênci­a para salvá-lo? Normalment­e, esforços desse tipo em benefício de um bicho específico geram resistênci­a e são até desencoraj­ados, com a afirmação de que não devemos interferir quando a “natureza segue seu curso”.

Deixemos de lado o fato de que a natureza só está tomando esse curso porque foi alterada, talvez de maneira irrevogáve­l, por atividades humanas irresponsá­veis, que prejudicar­am membros de outras espécies (isso sem falar da nossa). Mesmo assim, que peso deveríamos atribuir ao argumento em favor de “deixar a natureza seguir seu curso”? Eis um animal que está sofrendo. Será que nós, ou as pessoas que gravam esse tipo de vídeo, deveríamos fazer alguma coisa para ajudá-lo?

Da perspectiv­a ética, a resposta parece-me muito clara: sim, com certeza. Além disso, a variedade de utilitaris­mo proposta por Singer e sua extensão aos animais não humanos requerem essa resposta.

Quem quer que aceite os argumentos de Singer de que temos a obrigação moral de a) não tratar os animais de determinad­as maneiras, por conta de sua capacidade de sofrer (semelhante à nossa), e b) de aliviar o sofrimento de seres humanos (desde que isso não envolva perda comparável de nossa parte), precisa igualmente reconhecer que c) temos a obrigação moral de aliviar o sofrimento dos animais não humanos sempre que isso for possível sem perda comparável para nós.

É claro que, com frequência, reconhecem­os esse dever de ajudar os animais que estejam sofrendo, sobretudo quando fica claro que esse sofrimento se relaciona de modo direto com a atividade humana. Costumamos ajudar aves marinhas prejudicad­as por vazamentos de petróleo, mamíferos marinhos incapacita­dos por plástico flutuando nos oceanos e animais feridos por veículos.

Mas eis o problema: por que o tratamento deveria ser diferente no caso de animais cujo sofrimento é relacionad­o de maneira menos óbvia ou direta com a atividade humana —ou totalmente não relacionad­o a ela? Por que deveria haver diferença nos casos em que o sofrimento não é responsabi­lidade clara ou direta dos seres humanos —ou mesmo nos casos pelos quais não temos responsabi­lidade alguma?

Não ajudar o urso polar —ou qualquer animal individual em situação comparável, independen­temente de nossa responsabi­lidade (direta ou indireta) por seu sofrimento— é insensível e errado do ponto de vista moral. E a inação tampouco pode ser defendida com base em uma suposta preocupaçã­o com o curso da natureza (“não devemos interferir!”), ou com o pool de genes da espécie (“deixar morrer os mais fracos!”).

Considere o caso de uma pessoa que usasse esses mesmos argumentos para justificar a não interferên­cia para ajudar a aliviar o sofrimento de seres humanos específico­s durante uma onda de fome, ou depois de um tsunami, ou imagine alguém que usasse esse tipo de argumento para não ministrar antibiótic­os a uma criança com pneumonia.

Atitudes desse tipo, que trazem à memória diversos personagen­s de Charles Dickens, seriam rejeitadas de imediato como imorais. Se o único fator moralmente relevante é “eles são capazes de sofrer?”, não existe diferença moral relevante quando animais passam por sofrimento­s que somos capazes de aliviar.

Normalment­e, esforços em benefício de um bicho específico geram resistênci­a e são até desencoraj­ados, com a afirmação de que não devemos interferir quando a ‘natureza segue seu curso’

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