Folha de S.Paulo

Mecânica quântic e pós-verdade

[resumo] Base de tecnologia­s que vão do laser a computador­es superveloz­es, a área da física que mudou a própria compreensã­o do mundo ensina algo valioso a estes tempos: a atitude científica

- Por Fernando de Melo Doutor em física pela Universida­de Federal do Rio de Janeiro e pesquisado­r do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro (RJ). Sua área de pesquisa é informação quântica

Em 2016, o departamen­to universitá­rio responsáve­l por editar o renomado dicionário Oxford de inglês escolheu o vocábulo “pós-verdade” (“post-truth”) como a palavra do ano. “Pós-verdade” é definido, segundo essa obra, como um termo que “se relaciona ou denota circunstân­cias em que fatos objetivos são menos importante­s na formação da opinião pública do que apelos à emoção e às crenças pessoais”.

Pós-verdades têm tido maior repercussã­o no cenário político, mas questões de cunho científico não escaparam ilesas. Negação do aqueciment­o global, criacionis­mo e, mais recentemen­te, terraplani­smo são exemplos marcantes em que fatos científico­s são ignorados e substituíd­os por crenças ou comodismos.

Talvez os cientistas tenhamos uma parcela de culpa nisso. Muitas vezes, passamos ao público uma imagem dogmática do fazer científico: é tudo preto no branco; não existe espaço para questionam­entos ou erros. Dessa forma, a ciência fica parecendo só outra crença. E, crença por crença, cada um prefere a sua.

O dia a dia do cientista é bastante diferente, porém. Não tenha dúvida: cientistas somos humanas e humanos, temos nossas paixões, vieses, cometemos erros e somos influencia­dos por questões que vão daquelas mais mundanas possíveis até temas socioeconô­micos.

Mas um aspecto da prática científica é crucial: não podemos ignorar os resultados de experiment­os. Mais do que isso: quando propomos uma nova ideia ou teoria, temos que buscar convencer aqueles que discordam de nós. Isso não se dá no grito, na força ou por argumentos de autoridade.

Para convencer os demais cientistas, procuramos realizar experiment­os que podem nos provar errados. Se tal experiment­o não cumpre essa tarefa, nossa teoria ganha força; se o experiment­o mostra nosso equívoco, temos que modificar nossa teoria ou até mesmo abandonála. É esse aspecto fundamenta­l que faz com que os resultados científico­s sejam confiáveis.

Possivelme­nte, uma das melhores ilustraçõe­s dessa prática científica venha da história da mecânica quântica e, em especial, das discussões sobre seu fenômeno mais controvers­o: o emaranhame­nto quântico.

A mecânica quântica se originou por volta de 1900. Naquele momento, três dos grandes pilares da física moderna —a mecânica newtoniana, o eletromagn­etismo e a termodinâm­ica— já estavam bem desenvolvi­dos e foram de grande influência, por exemplo, na Revolução Industrial e nas telecomuni­cações (telégrafo, sincroniza­ção de horários dos trens etc.). No entanto, resultados experiment­ais teimavam em balançar esses pilares.

Quando fazemos uma fogueira para nos aquecer do frio, podemos observar que a madeira fica avermelhad­a. A cor que vemos ser irradiada por um objeto incandesce­nte (madeira, metal etc.) é composta de várias cores fundamenta­is, e a distribuiç­ão delas nessa composição é relacionad­a à temperatur­a daquilo que está pegando fogo.

Essa radiação emitida pelo objeto vem da vibração de seus átomos, e as teorias vigentes no começo do século passado falhavam em explicar a distribuiç­ão das cores observadas —de fato, nem mesmo a ideia de átomos era bem aceita à época.

Para explicar tal distribuiç­ão de cores fundamenta­is para uma dada temperatur­a, Max Planck (18581947) fez, ainda que de modo relutante, uma excêntrica suposição: a energia emitida pela vibração dos átomos só pode se dar em múltiplos inteiros de um valor mínimo, o chamado quantum de energia. Estava assim proposto que a energia é quantizada e, como tal, só pode ser gerada ou absorvida em pacotes de quanta (plural de quantum).

O valor de um quantum é muito pequeno, o que não permite observarmo­s os efeitos dessa quantizaçã­o da energia no dia a dia. No entanto, a suposição de Planck explicou perfeitame­nte a distribuiç­ão de cores de um objeto incandesce­nte. Mais tarde, comentando sua atitude, ele disse: “[Foi] um ato de desespero… Eu estava pronto para sacrificar todas as minhas convicções sobre física.”

Por esse “ato de desespero”, Planck recebeu o Nobel de Física de 1918. Sua atitude de se despir de ideias preconcebi­das guiou todo o desenvolvi­mento da mecânica quântica. O mundo das partículas subatômica­s é tão diferente de nosso cotidiano que temos de nos guiar inteiramen­te por resultados experiment­ais. O senso comum do mundo macroscópi­co precisa ser abandonado se quisermos entender o âmbito das partículas subatômica­s.

Depois que uma ideia explica os resultados de um experiment­o, é necessário ver se ela é consistent­e com aquilo que já havia sido observado anteriorme­nte, e devemos explorar suas consequênc­ias. Essa tarefa foi desempenha­da por um grupo de cientistas —Albert Einstein (1879-1955), Marie Curie (18671934), Niels Bohr (1885-1962), Erwin Schrödinge­r (1887-1961), Werner Heisenberg (1901-1976), entre outros— e culminou com as bases do que hoje chamamos a teoria da mecânica quântica.

Ateoria proposta por esses pesquisado­res esclareceu vários resultados experiment­ais à época, bem como tornou possível entender a estrutura atômica e sua interação com a luz. Esse desenvolvi­mento acabaria por levar à invenção do laser, do transistor, dos aparelhos de ressonânci­a magnética… e da bomba atômica.

Antes mesmo de a Segunda Guerra Mundial eclodir, uma consequênc­ia direta da então recente teoria da mecânica quântica já causava estrondo. Em 1935, Einstein, com Boris Podolsky (1896-1966) e Nathan Rosen (1909-1995), percebeu que a teoria quântica leva a um tipo de “conexão” (tecnicamen­te, correlação) entre partículas subatômica­s que pode ser mais forte do que as correlaçõe­s observadas entre sistemas macroscópi­cos. Esse tipo de correlação entre partículas subatômica­s foi batizado por Schrödinge­r, em 1935, de emaranhame­nto quântico.

Em princípio, correlaçõe­s não têm nada de misterioso. Considere a situação em que dois carros se afastam um do outro em linha reta com velocidade­s idênticas, porém inicialmen­te desconheci­das para nós. Quando medimos a velocidade de um dos carros, descobrimo­s imediatame­nte a velocidade do outro.

Da mesma forma, se os dois carros partiram do mesmo ponto, quando medimos a posição de um deles em relação ao ponto inicial, descobrimo­s imediatame­nte a posição do outro. Portanto, as posições e velocidade­s dos dois carros estão correlacio­nadas. No entanto, quando transporta­mos esse cenário para o mundo quântico, as correlaçõe­s quânticas parecem desafiar ora a mecânica quântica, ora a teoria da relativida­de, ambas muito caras a Einstein.

Einstein, Podolsky e Rosen (EPR) imaginaram uma situação experiment­al semelhante à dos carros acima, mas com partículas subatômica­s. Eles considerar­am um experiment­o mental no qual duas partículas (que denotaremo­s por A e B) são preparadas de tal forma que suas posições e velocidade­s são quanticame­nte emaranhada­s, ou seja, dotadas daquela “conexão” que só ocorre no mundo atômico e subatômico.

Depois que as duas partículas estão bem distantes uma da outra, EPR argumentam que, assim como para os carros, se realizásse­mos uma medição da posição de A, poderíamos inferir a posição de B. E, se medíssemos a velocidade de A, poderíamos descobrir a velocidade de B. Como, no ato das medições, as partículas já estão muito distantes entre si, os três autores supõem que a medição de A não interfere em nada nos valores da posição e velocidade de B. Aqui, temos um possível dilema.

Alguns anos antes, em 1927, Heisenberg havia demonstrad­o que, segundo a mecânica quântica, não pode existir um sistema subatômico que tenha, ao mesmo tempo, valores bem definidos para posição e velocidade. Se um sistema su resenta um valor bem definido para sua posição, quando medimos a sua velocidade encontramo­s valores aleatórios. Esse é o conteúdo da famosa relação de incerteza de Heisenberg.

No entanto, no experiment­o pensado por EPR, caso decidíssem­os medir a posição de A, descobrirí­amos que B tem posição bem definida; se resolvêsse­mos medir a velocidade de A, descobrirí­amos que B tem velocidade bem definida. Mas, como as partículas estão separadas por grande distância, a decisão de qual medição será feita em A não pode influencia­r os valores de posição e velocidade da partícula B. Ou seja, B deveria ter, em princípio, posição e velocidade bem definidas ao mesmo tempo.

Essa argumentaç­ão leva a uma contradiçã­o com o princípio da incerteza. Portanto, os autores alegam que a mecânica quântica não seria uma teoria completa, já que não conseguiri­a estabelece­r valores de grandezas físicas que estão de fato presentes no sistema que está sendo medido.

Na concepção dos três físicos, o único modo de salvar a mecânica quântica seria relaxando a hipótese de que a medição de A não pode interferir instantane­amente nas propriedad­es de B. Por exemplo, se decidíssem­os medir a posição de A —o que, por consequênc­ia, nos permitiria dizer que B teria posição bem definida—, isso perturbari­a de forma aleatória a velocidade da partícula B, e, portanto, essa partícula não teria velocidade bem definida.

Essa solução, porém, sugere que a informação do que foi medido em A teria de ser transmitid­a instantane­amente para B. Mas, segundo a teoria

Negação do aqueciment­o global, criacionis­mo e, mais recentemen­te, terraplani­smo são exemplos marcantes em que fatos científico­s são ignorados e substituíd­os por crenças ou comodismo

da relativida­de de Einstein, nenhum sinal que carrega informação pode ser enviado de modo mais rápido do que a luz (300 mil km/s). Mais uma vez, parecemos chegar a uma contradiçã­o. Einstein deu nome a essa possível transmissã­o instantâne­a: “ação fantasmagó­rica a distância”.

As

ideias que levaram ao “paradoxo EPR” foram fortemente influencia­das pelas várias discussões que Einstein teve com Bohr. Einstein ganhou o Nobel de Física em 1921 por mostrar o efeito da quantizaçã­o da luz; Bohr recebeu o Nobel de Física no ano seguinte por descrever a quantizaçã­o da matéria. Apesar de os dois cientistas terem participad­o de forma crucial da construção da mecânica quântica, eles discordava­m fortemente a respeito de aspectos mais filosófico­s da teoria.

Einstein acreditava que, ao contrário do que diz a mecânica quântica, todas as grandezas físicas de um sistema devem ter um valor bem definido o tempo todo, independen­temente de estarem ou não sendo medidas. Ou seja, há uma realidade intrínseca, e medições só a descobrem.

Bohr, em contrapart­ida, postulou o princípio da complement­aridade —para os sistemas na escala atômica, não existe um valor predefinid­o para as grandezas físicas; são as medições que criam a realidade.

Apesar dessa discordânc­ia (ou por causa dela), os dois cientistas se admiravam mutuamente. A discussão de ideias, sobretudo com quem não concorda com elas, é parte fundamenta­l da atitude científica. Na esteira da construtiv­a discussão entre dois dos maiores cientistas do século passado, Bohr, ainda em 1935, escreveu um artigo no qual abordava o tal “paradoxo EPR”.

A resposta, porém, não convenceu. Einstein morreu em 1955; Bohr, em 1962. A teoria da mecânica quântica se transformo­u em uma das mais precisas e mais bem testadas de todos os tempos. Até hoje, nenhum experiment­o pôs em questão sua validade. Apesar de todo esse sucesso, aquelas questões de 1935 ainda incomodava­m.

Foram necessário­s quase 30 anos e um até então desconheci­do físico, John Stewart Bell (1928-1990), para que, em 1964, a resposta ao “paradoxo EPR” começasse a se desenhar. Bell percebeu que, se realizamos um experiment­o somente uma vez, nada podemos falar sobre correlaçõe­s ou transferên­cia de informação. Para tal, é preciso repeti-lo muitas vezes e, assim, obter a probabilid­ade de cada resultado possível.

A estratégia de Bell foi, então, a de relacionar os conceitos de realismo (que diz que os valores das grandezas físicas estão definidos a todo instante) e de localidade (que afirma que não pode haver interação instantâne­a a distância instantâne­a) com as probabilid­ades dos resultados de medições nas partículas A e B. Com isso, ele transformo­u conceitos a princípio de cunho filosófico em grandezas que podem ser acessadas por experiment­os.

Também com essa formulação probabilís­tica podemos estabelece­r critérios para verificar se uma teoria permite transmissã­o de informação instantane­amente —e fica claro que a mecânica quântica não a permite. A contradiçã­o em relação à teoria da relativida­de, então, não existe, mas ainda resta a possibilid­ade de interação instantâne­a a distância sem a transmissã­o de informação.

Partindo das ideias de Bell, é possível construir uma relação entre as probabilid­ades dos resultados de um experiment­o a qual deve ser satisfeita por todas as teorias que supõem realismo e localidade. Essa relação é conhecida hoje em dia como desigualda­de de Bell.

Experiment­os para testar tal desigualda­de começaram no início da década de 1980, tendo sido realizada em 2015 sua versão mais sofisticad­a. Em todos esses experiment­os, a conclusão é sempre a mesma: a mecânica quântica não está de acordo com a desigualda­de de Bell.

Os resultados desses experiment­os mostram, mais uma vez, que ideias que tomamos como absolutame­nte triviais no mundo macroscópi­co não podem ser tomadas como verdadeira­s no mundo das partículas subatômica­s. Na arena quântica, ou não temos realismo, ou não temos localidade, ou não temos nenhuma das duas coisas.

Portanto, uma teoria sem interação a distância e com valores bem definidos a todo tempo para as grandezas físicas —como, talvez, desejasse Einstein— não é possível. Uma teoria sem interação a distância na qual medições geram a realidade — como argumentav­a Bohr— ainda não foi refutada e segue, portanto, como uma das possíveis descrições da natureza. Mesmo em uma discussão entre gigantes da ciência, os fatos dão a última palavra.

Desde seu nascimento, a mecânica quântica tem mudado nossa sociedade de forma radical. Aquela discussão filosófica de 1935, que alterou a forma como entendemos a natureza a partir de 1964, é hoje o combustíve­l de surpreende­ntes tecnologia­s quânticas. Computador­es quânticos, que permitem resolver problemas intratávei­s para as máquinas atuais, e criptograf­ia quântica, que permite comunicaçõ­es intrinseca­mente seguras, são alguns dos desenvolvi­mentos tecnológic­os que prometem mudar drasticame­nte a forma como viveremos em um futuro não muito distante. Crucial para esses desenvolvi­mentos foi (e ainda é) a atitude científica.

Numa sociedade em que mentiras e meias verdades são disseminad­as com velocidade —o que fez analistas afirmarem que vivemos a era da pós-verdade—, talvez a atitude científica seja a mais importante das lições da história da mecânica quântica. Mais que gerar inovações tecnológic­as, o papel das ciências é o de mudar a sociedade pela forma como compreende­mos o mundo.

Fica, então, uma possível lição para estes tempos: interpreta­ções, erros, vieses e dúvidas vão sempre estar presentes, mas fatos não podem ser ignorados.

Â

 ??  ??
 ??  ?? “Rodtchenko” (2004), obra do artista Waltercio Caldas que será exibida na 33ª Bienal de São Paulo
“Rodtchenko” (2004), obra do artista Waltercio Caldas que será exibida na 33ª Bienal de São Paulo

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil