Folha de S.Paulo

Frescura de grã-finagem

- Por Joaquim Pedro de Andrade Cineasta brasileiro (1932-1988), foi um dos principais nomes do cinema novo

69. Levitação dupla

Taís chega em casa arrasada, olho roxo, vestido rasgado que secou no corpo.

Entra na sala quase sem móveis. No meio, um genuflexór­io duplo. À luz de um tocheiro de vela, um grosso livro aberto repousa, sem quem o leia, num desses apoios de igreja.

Bento, em posição já habitual, com o corpo reto inclinado para trás formando um ângulo de uns 45 graus com o chão, sem apoio algum, lê ou medita, contrarian­do a lei da gravidade. Taís se agacha em fetal desespero.

O barulho, quase imperceptí­vel, atrai a atenção de Bento, que se coloca imediatame­nte em posição vertical, desce e vem ter com ela. Segura-lhe as mãos, levanta-lhe o rosto. Do olho roxo escorre uma lágrima. Bento se agacha ao lado de Taís, toma-a pelos ombros, levanta-se com ela e a conduz abraçada para o genuflexór­io onde os dois se ajoelham, um de frente para o outro.

Taís Não adianta, Bento. Eles vão nos perseguir até o fim. Você tem que ir embora, já. Eles vão te torturar de novo, eles vão nos matar, Bento. Eu estou com vergonha, tanta vergonha, não olha para mim, vai embora, pelo amor de Deus... Bento Taís, às vezes a noite me ilumina. Uma tempestade se desata dentro de mim e caem raios de trevas mais pretas que a escuridão. São revelações, Taís, segredos que iluminam tanto que um só deles compensa tudo que se tenha conhecido de ruim na vida! É uma verdadeira descoberta, Taís, a pessoa fica tão animada que dá vontade de padecer mais, muito mais e aí não padece nada, pelo contrário! E uma felicidade imensa, uma ânsia, uma inflamação de amor... Taís, eu quero pôr fogo em seu coração, quero afastar de você todo o medo, quero que você atravesse comigo a noite, a madrugada e logo...

Enquanto fala, numa euforia intensa que vai contagiand­o e iluminando a moça, Bento começa a levitar, elevando Taís com ele, de mãos dadas, ajoelhados agora no ar um diante do outro.

Bento ...a gente vai chegar às mais altas cavernas da serra, Taís, que estão bem escondidas. Vamos pisar na escuridão, vamos voar mais alto que os anjos, subir além dos querubins, planar. Taís, nas asas do vento...

No seu entusiasmo, Bento deixa as mãos de Taís e abre os braços para planar pela sala. Taís despenca.

70. Crioulo voa

O carro do fotógrafo Grisalha, cada vez mais maltratado, seguido de outro reluzente de novo, chega a um lamaçal ermo, à margem do lago Paranoá.

Do primeiro, descem Grisalha, com sua surrada sacola de fotógrafo a tiracolo, Armandão, uma bicha e, por fim, o negro Tição, vestido a caráter, isto é, fantasiado de Crioulo Voador, modelo inspirado no uniforme do Super-Homem, bolado por Armandão e executado por uma aprendiz de costureira de Ceilândia, amiga do Grisalha. Tição, de capa, bota e tudo, fica por ali, pisando na lama, pouco à vontade.

Armandão abre a mala do carro de Grisalha e tira de lá uma cadeirinha de armar, que coloca sob a luz dos faróis do carro chique de OB, que desembarco­u acompanhad­o por dois amarra-cachorros troncudos e mal-encarados, todos de mau humor.

Armandão (para a bicha): Aí, Mirandinha, maquia logo o crioulo.

Mirandinha Mas é aqui, nesse lamaçal, que vocês vão fazer a fotografia?

Armandão E onde é que você quer que o Tição caia? No chão? Aqui tem água pra ele cair, morrinho pra pular e não tem ninguém pra ver a gente.

Mirandinha Tudo isso, sem lama nem mosquito, tem na cobertura da Terezinha Pecô ou em qualquer mansão da Península dos Ministros. Em vez desse lago imundo, uma piscina limpinha, com mordomia e trampolim em lugar de morrinho com capim.

Armandão Lá vem você com frescura de grã-finagem! Tu não pegou o espírito da coisa? O Crioulo Voador é proleta, cara, é um herói popular, entendeu? O negócio é esse mesmo, lama, morro e vê se não enche, porra. Quer fazer o favor de maquiar logo esse cara?

Mirandinha Maquiar como? Só se eu pintar ele de branco. Põe a máscara e pronto, pula.

Armandão Então vai, Tição. Põe a máscara e pula.

Tição (pondo uma máscara tipo gatinha, de purpurina ciclâmen): Mas eu não sei nadar!

Grisalha (perdendo a cabeça): Tição, pula e não chateia. Aí deve ser raso e, se não for, tu te vira. Pela nota que você está levando até camelo nada.

Armandão Deixa comigo. (Pegando Tição e levando ele pelo braço para cima do morrinho) Tição, pula que não tem problema, é só cair n’água que a gente te pesca no ato. Que é isso, cara? Quer me deixar mal? Um porrilhão de crioulo por aí, louco por uma boca dessas, eu te indico pro trabalho e tu quer dar uma de cagão? Vai lá. Lembra a posição? (Armandão faz a posição do Super-Homem voando; Tição toma posição) Aí, Grisalha, tá pronto? Não vai errar o foco.

Grisalha E tu já me viu errar o foco, filho da puta?

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Armandão Já. Mas dessa vez não erra. Vamo lá. Um, dois...

[SOBRE O TEXTO] O trecho nesta página faz parte de “O Imponderáv­el Bento Contra o Crioulo Voador”, roteiro escrito pelo cineasta, mas nunca filmado e que, segundo Roberto Schwarz, é “uma obra-prima desconheci­da de nossas letras”. O texto chega às livrarias pela Todavia na próxima semana. Haverá um evento de lançamento no dia 21, às 19h30, com debate entre os pesquisado­res Eliane Robert Moraes e Carlos Augusto Calil no IMS da av. Paulista —que promove, de 6 a 23/9, uma retrospect­iva com 14 filmes do cineasta.

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