Folha de S.Paulo

MAMÃE NEURA

- Tati Bernardi

Obstetras entediados, por Tati Bernardi

Quando me descobri grávida, um duo de rock pesado, grande encontro do deslumbram­ento com o pavor, passou a comandar a trilha sonora dos meus pensamento­s. Daí você, moçoila prenha, esse ser humano pós-individual­ismo, essa mulher préoutra, esse sujeito enlevado pela divindade (no instante exato em que é também soterrado pela constataçã­o banal da continuida­de), você, com todos os seus pedaços boiando num mar de hormônios loucos, senta-se na frente de um médico que te olha com aquela cara de: “Sei, você e a torcida do Flamengo”.

Mas, doutor, é um enjoo que não passa. E ele sorri e responde: “Normal”. Eu, que era superativa, só durmo. Normal. Eu, que tinha tantas certezas, só choro. Normal. Eu, que dizia tanto “eu, que”, agora coabito meu corpo com uma vida desconheci­da que me empurra os órgãos e me rouba o ferro. Normal.

Nada contra a palavra normal. Dita com apreço e paciência, ela pode, de fato, até acalmar e fazer bem. O problema é a expressão de enfado dos obstetras. É a transparên­cia com a qual nos demonstram tamanha preguiça em ver o mesmo filme de novo e de novo e de novo. “Ah, mais uma grávida estressada.” Não tem como ornar o nosso cérebro fritando e eles bocejando. “Ah, mais uma mulher surtada.”

Num dos momentos mais importante­s e únicos da sua vida, precisar tanto das palavras de um especialis­ta que já falou aquilo um milhão de vezes e, por vício de profissão (e falta de estudo de psicanális­e), aprendeu a rotular as pessoas chega a ser desumano.

Eles já viram 7.675 ultrassons. Já fizeram 6.476 partos. Já respondera­m “normal” pra 9.598 mulheres. E eu com isso? E você com isso?

Testei uma infinidade de obstetras, acompanhei o relato de uma infinidade de amigas que testaram uma infinidade de obstetras —e minha conclusão é que eu caguei se a vida deles anda chata ou monótona. Algo extraordin­ário não deixa de sê-lo apenas porque acontece com muita gente.

Amigos obstetras, pelas suas mãos, novas e chorosas vidinhas chegam a este planeta. Novas e assustadas mães chegam a este mundo. Se isso lhes parece tedioso, ainda é tempo de virar bibliotecá­rio.

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