BAIXO HIGIENÓPOLIS
Padroeira dos músicos e da música clássica, Santa Cecília dá nome a mais um bairro central que vive em plena mutação
“Ai, como eu queria tanto agora ter uma alma portuguesa/ Para te aconchegar ao meu seio/ E te poupar dessas futuras dores dilaceradas/ Como queria tanto saber poder te avisar/ Vai pelo caminho da esquerda/ Que pelo da direita/ Tem lobo mau e solidão medonha.”
Na fria noite de julho, na penumbra do porão-teatro localizado no número 35 da rua Fortunato, a poesia de Caio Fernando Abreu se materializava na voz de Luiz Fernando Almeida, 43. Apaixonado pelo texto “Dama da Noite”, que o dramaturgo gaúcho escreveu em 1980, o ator se apresentou naquele subsolo todas as quintas, entre abril e julho.
O endereço, charmosa casa do início do século 20, abriga desde fevereiro deste ano o Cabaret da Cecília. “Queríamos um espaço cultural pequeno, alternativo. A ideia é ser mesmo um cabaré, uma mistura de bar, taberna e teatro, com apresentações burlescas e shows de striptease, num estilo vaudeville”, conta o sócio Tiago Santos.
No porão, três apresentações a cada noite; às quintas, uma peça. No térreo, um balcão de onde se pode observar o barman Fabio Machado praticar sua alquimia alcoólica tendo às costas o magnífico espelho espanhol de cristal dos anos 1940.
Entre os drinques do alquimista, ele próprio cita o Purple Rain —vodca, mix de
licores, tônica e alecrim— e o Red Velvet – gim Gordon’s, cranberry, sidra e manjericão.
Há ainda as cervejas produzidas exclusivamente para a casa: Josephine Beer, uma american pale ale; Gilda Beer, obviamente com Rita Hayworth no rótulo; Billie Holiday, uma stout com 8% de álcool —“negra e alcoolizada como ela”, ressalta o barman—; e ainda a Cecília Beer, de baixo teor alcoólico e que leva amora na receita.
Detalhe: as exibições no porão são gratuitas. Tiago passa o chapéu, e quem quiser contribui com os artistas. Quem preferir subir ao palco para cantar, dançar, declamar, tirar a roupa... A casa é toda sua. ▸
Santa Cecília é a padroeira dos músicos e da música sacra, mas o Cabaret da Cecília é apenas uma das provas recentes de que, no bairro batizado com o nome da santa, também estão sob sua proteção chefs, pintores, floristas, dançarinos, mestres cervejeiros e uma infinidade de outros pagãos.
Outro exemplo está a poucos passos do Cabaret, no bar e restaurante palestino Majâz, criado pelos irmãos Mouhammad e Raame Othman e inaugurado em abril. A configuração do terreno, de forma mais ou menos retangular, permitiu que a equipe representasse, em suas instalações, o mapa original da Palestina, aquele que começou a ser desfeito em 1948.
Cada parte do restaurante representa uma cidade ou região do país. Você entra no bar como se estivesse vindo do Líbano e já está em Akka (Acre, em língua latina). Daí para a frente, o bartender Arturo Hartmann, doutorando em relações internacionais sobre o processo de paz entre a Palestina e Israel, vai te mostrar o território inteiro.
Em todas as paredes, há desenhos do personagem Handala, ícone da resistência palestina, criado pelo cartunista Naji Salim al-Ali, assassinado em Londres em 1987.
Entre os drinques criados pela equipe de bartenders, o Majâz (cachaça, arak, zaatar verde, pimenta preta, pimenta-biquinho, hortelã e limão) faz sucesso. Da cozinha, saem shawarma, maklouba (arroz, nozes, frango e carne bovina) e falafel.
A poucas quadras dali, no primeiro quarteirão da rua Barão de Tatuí, o Quintal do Centro mostra que é possível encontrar um pouco de paz e sossego em meio às infinitas paredes de tijolos da metrópole.
Misto de cafeteria e floricultura, o Quintal oferece um “feirão de plantas” e churrasco vegano aos sábados, à sombra de um enorme fícus e de um abacateiro. As farofas especiais e os molhos que acompanham os legumes defumados dão um gostinho de churrasco aos que sentem saudade da carne. ▸
Mais à frente, subindo a rua, é a vez das artes plásticas. Instalada sobre o restaurante Così, a galeria VerArte, inaugurada em junho, dedica-se à arte contemporânea e apresenta 14 artistas, entre pintores, escultores, fotógrafos e ceramistas.
Ao final da tarde, quando se aproxima o lusco-fusco e tudo parece já não fazer mais nenhum sentido, é hora de correr ao número 402 da mesma rua, pegar um cartão com Leopoldo Furtado e brincar nas 18 torneiras de chope do Cerveja a Granel.
O ex-médico pediatra abandonou a profissão e abriu, em novembro passado, a choperia no sistema pré-pago. Você compra um cartão, abastece-o e pode sair provando os vários tipos de bebida ali ofertados. Gostou muito de um específico? Tranquilo. Peça ao ex-doutor para encher seu growler (um garrafão de 1 ou 1,9 litro).
A choperia não oferece nada comestível, o que não deixa de ser uma atitude socializante, altruísta, democrática, já que os convivas são obrigados a abastecer o estômago nos bares e restaurantes do entorno.