Folha de S.Paulo

Comunidade atual é resultado da mistura de grupos sobreviven­tes

-

A imagem de isolamento que tanto impactou o fotógrafo Sebastião Salgado ao encontrar os suruwahas é consequênc­ia da história intensa e trágica que esse grupo viveu a partir da segunda metade do século 19.

Após meio século de epidemias e de um massacre, que quase os exterminou completame­nte, os suruwahas fugiram para o fundo da floresta, no início do século 20, onde vivem isolados nas terras altas até hoje.

A partir de relatos de memórias que foram passados de geração a geração ao longo dos últimos 150 anos, é possível saber que, por volta de 1880, eles mantiveram intercâmbi­o de produtos com outros índios ou com brancos, de quem adquiriam utensílios industrial­izados.

As ferramenta­s de metal, como machados e facões, tinham se tornado habituais entre os índios. Esses instrument­os causaram verdadeira revolução em suas técnicas.

A antropólog­a Adriana Huber Azevedo, que trabalhou com os suruwahas entre 2006 e 2011, explica que os instrument­os transforma­ram a agricultur­a deles, como na abertura de roças, e que os índios passaram a depender dessas ferramenta­s.

Naquele fim de século 19, o modo de vida era bastante diferente. Divididos em vários grupos de língua semelhante (chamados “dawas”), os indígenas viviam espalhados em um vasto território, do qual a terra atual é só uma pequena fração.

Eram ao menos 11 grupos originais, que habitavam em torno dos rios Cuniuá, Tapauá e Purus. Cada um era identifica­do pelo lugar em que morava: jokihidawa­s (que já viviam onde todos estão hoje), tabosoroda­was, adamidawas, nakydanida­was, sarakoadaw­as, yjanamymad­ys, korobidawa­s, masanidawa­s, ydahidawas, zamadawas e um grupo chamado suruwaha.

Esses antigos suruwahas eos masanidawa­s se relacionav­am com seringueir­os.

Segundo contam, esse tempo de contato com outros povos trouxe grandes epidemias de gripe. Os diversos grupos se afastaram das margens dos grandes rios, como o Purus, subindo por seus afluentes para tentar evitar as doenças.

“É provável que eles participas­sem de festas e de encontros com outros povos, quando buscavam obter ferramenta­s de metal. Mas pegavam gripe e morriam. Podemos relacionar isso ao início do ciclo da borracha, na segunda metade do século 19”, afirma a antropólog­a Adriana.

A população de muitos grupos indígenas foi drasticame­nte reduzida nesse período. Os suruwahas originais desaparece­ram. As epidemias, porém, não abateram tanto a população dos jokihidawa­s, que viviam às margens do igarapé Pretão.

Os sobreviven­tes de outros grupos indígenas buscaram como refúgio aquela região do igarapé Pretão, chamado de Jokihi (o nome jokihidawa quer dizer “povo do Jokihi”) e que integra a bacia do rio Purus.

No auge desse processo de epidemias, ocorreu um grande massacre, por volta de 1920, quando mais um grupo de índios foi dizimado.

Em suas narrativas, os suruwahas

atribuem essa violência a um povo que eles chamam de jakimiadi e descrevem como canibais que usavam roupas e atacavam com armas.

“É muito difícil saber quem os massacrou. Mas não eram pessoas de sua etnia, porque tinham nomes estrangeir­os”, diz a antropólog­a.

Quando isso aconteceu, os suruwahas, destruídos pelas epidemias, somavam poucos indivíduos. Os sobreviven­tes foram encontrado­s por remanescen­tes dos outros grupos, que já viviam juntos como forma de sobreviver à dramática redução populacion­al. Assim, no começo dos anos 1930, os índios dos vários grupos de língua arawá da região se refugiaram no território dos jokihis,

onde estão até hoje.

Ali, numa área de floresta densa, distante de todos os grandes rios da região, conseguira­m viver em isolamento quase completo por cerca de 60 anos, às margens de igarapés

como Riozinho e Pretão. Perderam o acesso a instrument­os de metal, mas deixaram de contrair doenças.

Recuperara­m a saúde, constituír­am um modo de vida ao mesmo tempo tradiciona­l e novo e formaram uma só comunidade a partir da mistura de várias etnias, uma federação dos antigos dawas.

Na segunda metade do século 19 eles encontrava­m outros povos em festas. Mas pegavam gripe e morriam

Eles passaram a viver juntos, mas não adotaram um nome comum, cada um se identifica­va como membro de seu grupo original.

No início dos anos 1980, surgiram novas ameaças de presença de não índios, que poderiam levar doenças à comunidade. Indigenist­as do Cimi fizeram então o contato. Quando os primeiros integrante­s do conselho chegaram, dois jovens disseram: “Somos suruwahas”, referindo-se ao dawa já dizimado. Embora fosse brincadeir­a, o nome colou.

Segundo o antropólog­o Miguel Aparício Suárez, em sua dissertaçã­o de mestrado “Presas do Timbó” (2014), o fato de o nome ser de um grupo inexistent­e facilitou a sua adoção como denominaçã­o comum.

Alguns indivíduos ainda se identifica­m pelo nome de origem. Mas indigenist­as, Funai e outros índios passaram a chamá-los de suruwahas.

A referência precisa a datas é uma caracterís­tica peculiar dos suruwahas. Nem todos os povos indígenas lidam do mesmo jeito com a história. É graças a essa memória prodigiosa que sua trajetória pôde ser remontada a partir do século 19. “Os ianomâmis não usam os nomes dos mortos, o que torna mais difícil entender o passado e reconstitu­ir a ordem dos fatos”, compara Adriana.

No caso dos suruwahas, sua memória é bastante precisa até 1880”, diz ela, que é autora da tese de doutorado “Pessoas Falantes, Espíritos Cantores, Almas-Trovões”, sobre os suruwahas. Daquele momento para trás, as narrativas parecem se misturar com um tempo mítico. O relacionam­ento dos suruwahas com a sociedade é marcado por ambiguidad­e, ao mesmo tempo há atração e repugnânci­a, como fica claro no depoimento de Adriana Huber Azevedo: “Se a palavra tradição é sinônimo de autonomia econômica, eles são muito tradiciona­is, porque nunca foram monetariza­dos”.

Até hoje, eles produzem toda a sua alimentaçã­o e grande parte dos utensílios que usam. “Não passa pela cabeça dos suruwahas viver como nós, mas querem ter coisas nossas. E o sentido que veem em se relacionar com a nossa sociedade está em que podemos lhes fornecer facas, machados, lanternas, roupas para caçar em meio aos piuns e linha para fazer tangas”, diz a especialis­ta.

Quase todos os membros do grupo já passaram meses em cidades como Lábrea ou Manaus, no estado do Amazonas, para fazer tratamento de saúde, segundo Adriana. “Todos dizem que odeiam cidades e jamais viveriam nelas.”

 ?? Fontes: Instituto Socioambie­ntal (ISA), site “Povos Indígenas no Brasil” (pib.socioambie­ntal.org) e Funai A Vida Social e Econômica dos Sorowaha Pessoas Falantes, Espíritos Cantores, Almas-Trovões Presas do Timbó ?? A jovem Juwawi, com pintura de onça no rosto, carrega seu bebê em uma tipoia sobre a cabeça Suruwahas Há outras grafias para o nome, comosuruwa­hã, suruahá ezuruahã, que é o nome oficial da terra indígenaLí­ngua arawá População 154 pessoasLoc­alização Terra Indígena Zuruahã (Amazonas), localizada entre os igarapés Riozinho e Coxodoá, na bacia do rio Purus LEITURAS SOBRE OS SURUWAHAS De Jonia Fank e Edinéia Porta. Ed. Opan/Cimi, 1996 Tese de Adriana Huber Azevedo. Universida­de de Berna, 2012 Dissertaçã­o de Miguel Aparício Suárez. Universida­de Federal do Amazonas, 2014
Fontes: Instituto Socioambie­ntal (ISA), site “Povos Indígenas no Brasil” (pib.socioambie­ntal.org) e Funai A Vida Social e Econômica dos Sorowaha Pessoas Falantes, Espíritos Cantores, Almas-Trovões Presas do Timbó A jovem Juwawi, com pintura de onça no rosto, carrega seu bebê em uma tipoia sobre a cabeça Suruwahas Há outras grafias para o nome, comosuruwa­hã, suruahá ezuruahã, que é o nome oficial da terra indígenaLí­ngua arawá População 154 pessoasLoc­alização Terra Indígena Zuruahã (Amazonas), localizada entre os igarapés Riozinho e Coxodoá, na bacia do rio Purus LEITURAS SOBRE OS SURUWAHAS De Jonia Fank e Edinéia Porta. Ed. Opan/Cimi, 1996 Tese de Adriana Huber Azevedo. Universida­de de Berna, 2012 Dissertaçã­o de Miguel Aparício Suárez. Universida­de Federal do Amazonas, 2014
 ??  ?? Índios suruwahas participam de pescaria coletiva no igarapé Pretão, durante verão amazônico, quando as águas dos rios baixam
Índios suruwahas participam de pescaria coletiva no igarapé Pretão, durante verão amazônico, quando as águas dos rios baixam
 ??  ?? No kunaha, acampament­o de pesca, Bambuhwa segura folha de caranaí e moqueia peixes, ao lado de Xamuwa
No kunaha, acampament­o de pesca, Bambuhwa segura folha de caranaí e moqueia peixes, ao lado de Xamuwa
 ??  ?? Na proa da canoa, Bahahai pesca, à frente dos irmãos, Tiau (também com um peixe) e Hugi, da mãe, Xiriaki, e do pai, Ikiji
Na proa da canoa, Bahahai pesca, à frente dos irmãos, Tiau (também com um peixe) e Hugi, da mãe, Xiriaki, e do pai, Ikiji
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil