Folha de S.Paulo

Cirurgia de catarata devolve o mundo a anciãs

- Leão Serva

Há cerca de 20 anos, a escuridão da floresta alta se tornou ainda mais escura para Xamã e Wixikiwa: as duas mulheres perderam a visão, com catarata. Seu mundo se fechou.

A vida cotidiana na selva exige o uso intenso dos olhos: nas grandes caminhadas para mudanças de maloca, para abrir novas roças ou para os acampament­os de caça e pesca ou mesmo o cuidado com as cobras em volta de casa. Tudo pede uma vista aguçada.

Seu sofrimento calado é narrado por histórias que os outros contam, como quando Xamã parou numa trilha para um acampament­o de pesca, não conhecia o caminho de cor e não via os vultos de outros para seguir.

As duas mulheres suruwahas já estavam desacorçoa­das com a longa cegueira quando, em maio deste ano, foram operadas.

Foi como um milagre. A uma antropólog­a que trabalha com a comunidade, as índias disseram que “voltaram a viver” e “ganharam vida nova”.

As operações foram realizadas pelo médico Mauro Campos, chefe do departamen­to de oftalmolog­ia da Escola Paulista de Medicina (da Unifesp), como parte do atendiment­o dado aos índios durante a passagem da ONG Expedicion­ários da Saúde (patrocinad­a por empresas) pela região do médio rio Purus, onde moram os suruwahas e outros grupos. Na aldeia, os cirurgiões da entidade trataram três pessoas com catarata e quatro com hérnia.

Segundo o censo feito durante a viagem, o grupo indígena tem poucos casos de doença. “Eu examinei todos eles e vi poucas pessoas com problemas de saúde. Eles são muito saudáveis e fortes”, diz Campos.

O médico conta que, além das duas mulheres idosas, operou um jovem, de 27 anos, que desenvolve­u um tipo menos comum da doença, a catarata traumática, causada por contusões no olho (batidas, perfuraçõe­s) que não cegam, mas ferem o cristalino e ele fica opaco.

Ao descrever suas impressões sobre os índios, ele repete a sensação de Sebastião Salgado: “Os suruwahas foram uma novidade para nós. Fiquei emocionado, eles não têm celular, não têm roupas, não têm escolas. A presença do Estado se dá apenas pela casinha da Sesai”, diz, referindo-se ao pequeno polo de saúde.

“Os índios com mais contato normalment­e mudam algumas coisas, culturalme­nte, mas eles não. Eles parecem ser muito tradiciona­is. Me senti realmente cuidando de índios isolados”, diz o professor da Unifesp.

“Ao longo do período em que estivemos lá, pudemos vê-los caçando com zarabatana. É impression­ante a habilidade deles. Pegaram um tucano. Acertam as aves voando.” Outra cena ficou em sua memória: “Eles comem de tudo, inclusive urubus”.

O médico conta que chegou a ouvir de trabalhado­res da região que os vizinhos temem o contato com os suruwahas porque eles conhecem muitos venenos. Mas Campos diz que não teve problemas em obter ajuda de agentes para tratá-los.

Também marcaram a lembrança do médico a arquitetur­a das casas, com mais de 20 metros de altura, a abundância de serpentes na aldeia e o fascínio dos índios por fotos. “Eles ficam o tempo todo olhando as fotografia­s que fazemos, sempre muito impression­ados”, conta Campos.

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Uma das duas índias suruwahas operadas de catarata pela ONG Expedicion­ários da Saúde, Wixikiwa segura macaquinho de estimação ao lado da neta

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