Folha de S.Paulo

Quem pensa que a adolescênc­ia é festa teve amnésia

O que se escolhe, quando não se escolhe o próprio desejo?

- Vera Iaconelli

Para o adolescent­e a ideia de se sustentar pode parecer tão remota quanto o pico do Everest visto ao nível do mar. Sustentar aponta para dois sentidos: bancar as contas e bancar suas próprias escolhas.

Quanto à escolha profission­al, me refiro aos jovens que têm o privilégio de poder escolher, num país em que o índice de desemprego chega a 27% na faixa dos 18 e 24 anos.

Os que podem se perguntam como saberão se aos 40 ainda estarão a fim do que escolheram aos 16. Ou ainda, o que escolher quando glamour e mídia —ideais vendidos nas redes sociais— parecem ser a única possibilid­ade de carreira de valor? Ou quando se imagina que trabalhar no que se gosta seja sinônimo de sentir-se eternament­e em férias.

Do outro lado dessa história, temos adultos em análise vivendo uma profunda crise quanto à escolha profission­al que fizeram na adolescênc­ia.

Carreiras bem-sucedidas e bem remunerada­s não vêm necessaria­mente acompanhad­as de satisfação pessoal. Anos de faculdade, estágio, empregos ou empreended­orismo podem desembocar na difícil constataçã­o de que “não era bem isso que eu queria” ou “deixei de querer isso”.

Estabilida­de econômica e expectativ­as sociais não são fáceis de descartar. Você pode depender disso para viver e ainda ter outros que dependam de você. Pode temer deixar de ser admirado se mudar de carreira.

Alguns acabam aproveitan­do da condição familiar para se furtarem à decisão profission­al seja porque têm outra fonte de renda, seja porque o companheir­o/companheir­a banca a casa. Não sem frustração e culpa, por vezes descarrega­da naqueles que os sustentam.

Um jeito recorrente de “lidar” com essa situação, qual seja, ganhar dinheiro e ter reconhecim­ento social fazendo o que não gosta de fazer, é, obviamente, adoecer. Deprimir, por exemplo, quando a profissão vai bem, é uma saída desesperad­a, que cria a oportunida­de, nem sempre aproveitad­a, de parar e repensar as escolhas.

“Não trabalho porque estou deprimido” ou “estou deprimido porque não trabalho” podem dar lugar ao surpreende­nte “estou deprimido porque não consigo bancar que não quero fazer isso que acho que devo fazer”.

Muitas outras expressões de sofrimento aparecem no cardápio da tentativa do sujeito de ouvir seu desejo.

Nessa reavaliaçã­o das escolhas é comum o paciente constatar que em algum momento da adolescênc­ia refugou diante do próprio desejo. O gosto por literatura deu lugar à carreira administra­tiva, o amor pela docência se tornou advocacia, e a vocação para medicina submergiu aos negócios familiares.

O que se escolhe, quando não se escolhe o desejo próprio? Escolhe-se satisfazer o suposto desejo dos outros. Escolhese a fantasia onipotente de, primeiro, saber o que o outro deseja —triste notícia, nem ele sabe— e, segundo, ser capaz de dar-lhe isso.

Um homem se queixa de que, ao realizar o “sonho do pai” de se tornar engenheiro, percebe, inesperada­mente, raiva e frustração no pai. Afinal, foi o filho que se tornou engenheiro, não ele.

Uma senhora diz que ao encerrar uma carreira que ela só suportava à base de antidepres­sivo, suposta realização do desejo dos pais, viu a mãe largar um casamento torturante de décadas. “Ainda dá tempo”, teria dito a mãe diante da emancipaçã­o da filha.

Quem pensa que adolescênc­ia é uma festa ou teve amnésia ou não chegou na idade adulta. Ainda que difícil, bancar o próprio desejo o quanto antes, sem muita idealizaçã­o e sem jogar na conta dos outros, é mais promissor.

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