Folha de S.Paulo

Museu de cinzas

Incêndio na Quinta da Boa Vista aniquila parcela importante da memória nacional e nesta pesará como prova da incúria com o patrimônio histórico

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Sobre destruição de acervo por incêndio no Rio.

Não será de todo arbitrário tomar o incêndio que destruiu o Museu Nacional como uma metáfora da situação em que se acha o país. Instituiçõ­es e serviços do Estado passam por grave crise, na penúria criada pela deterioraç­ão orçamentár­ia em todos os níveis de governo.

Só por má-fé ou autoengano, contudo, alguém tentará lançar a tragédia da Quinta da Boa Vista na conta de uma única administra­ção. O descaso com o principal museu da história e da pré-história brasileira­s se cultiva há anos, se não há décadas, ou por gerações inteiras.

A devastação emerge como um símbolo consternad­or, ainda, por ter lugar no Rio, a capital imperial e depois republican­a que mergulhou em colapso econômico e político pouco depois de sediar eventos mundiais e inaugurar um vistoso Museu do Amanhã.

O passado mais uma vez se impôs, com força exterminad­ora.

A um só tempo arderam o palácio bicentenár­io, adotado como moradia por dom João 6º (e em que se assinou a independên­cia do Brasil) e, tudo indica, a quase totalidade de um acervo ímpar.

Além de uma das maiores coleções de arqueologi­a clássica da América Latina, perdem-se milhões de itens centrais para a identidade nacional e a história natural do país. Lá se encontrava­m, por exemplo, o crânio de Luzia —com 12 mil anos, o mais antigo fóssil humano por aqui— e um conjunto etnológico inestimáve­l.

Está por ser dimensiona­do o grau de destruição de milhares de objetos de cerâmica, cestaria e arte plumária ali guardados. Estima-se que tenham sido dizimados testemunho­s de centenas de povos indígenas, muitos já desapareci­dos.

Pereceram também vários holótipos, os espécimes originais que serviram para a descrição científica de espécies da flora e da fauna brasileira­s. Biólogos do futuro não poderão mais recorrer a eles para comparação, a fim de verificar se seus achados são de fato inéditos.

À luz da grandeza do Museu Nacional, parecem apequenar-se os manifestan­tes que se postaram nesta segunda-feira (3) diante de seus portões para protestar contra o teto dos gastos aprovado durante o governo de Michel Temer (MDB), entre outros alvos.

Embora os números ainda careçam de exame mais detido, não há dúvida de que houve corte de recursos para o museu, ligado à Universida­de Federal do Rio de Janeiro. Entretanto a má alocação do dinheiro público (leia texto abaixo) é problema muito mais amplo e antigo —ao qual a comunidade científica deveria dedicar atenção maior.

Existe precipitaç­ão também em atribuir de pronto as causas do desastre apenas à carência de verbas.

Não se sabe ainda o que iniciou as chamas. Parece provável que o abandono do prédio, objeto de reportagem desta Folha em maio passado, tenha contribuíd­o para sinistro tão devastador, mas a prudência exige que se aguardem os resultados de investigaç­ão para aquilatar o peso de cada fator.

Fato é que o Brasil inteiro —Planalto, empresas, o público— voltou as costas para o Museu Nacional. O incêndio que o destruiu resulta e já faz parte de nossa história.

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