Folha de S.Paulo

Aos 88 anos, Antunes Filho estreia peça e diz que ‘morrer fora do palco é uma bosta’

Três meses antes de fazer 89 anos e apesar do momento de ‘crise total’, diretor Antunes Filho continua a experiment­ar em nova peça

- Nelson de Sá Lenise Pinheiro/Folhapress

No início da tarde desta segunda (3), o diretor Antunes Filho saiu da sala de ensaio para falar outra vez com o repórter, agora sobre a destruição do Museu Nacional, no Rio. “É terrível, terrível. É inacreditá­vel que isso aconteça”, diz ele.

Questionad­o sobre se o fato o faz perder a esperança, responde de bate-pronto que não. “Mas a crise é muito grande, total. Tem rumos a serem tomados. É um momento decisivo.”

Sobre não desistir e como se reerguer, fala, referindo-se à nova peça: “Eu estou nisso”. E voltou para o ensaio diário.

No próximo dia 13, exatos três meses antes de completar 89 anos, Antunes estreia “Eu Estava em Minha Casa e Esperava que a Chuva Chegasse”, do dramaturgo francês Jean-Luc Lagarce. É um espetáculo sobre a esperança.

Um homem jovem vai embora e não diz se volta, e cinco mulheres o esperam. Quando enfim retorna, deita-se quase morto, e elas seguem esperando que desperte, para contar a vida que teve, as guerras.

“O Antunes frisa que é um texto sobre a espera como esperança, ainda que tudo leve a não ter esperança”, conta o curador Ricardo Muniz Fernandes, amigo do diretor que acompanhou os ensaios com as cinco atrizes, para preparar o catálogo da peça.

“Na idade dele, e com o mundo do jeito que está, não era para ter mais esperança nenhuma. E ele continua.”

Antunes leu o texto em março do ano passado e passou de imediato a projetar a encenação. “Desde lá, ficou só nessa peça, mas reinventan­do”, relata a assistente de direção, Luana Frez, que trabalha pela primeira vez com ele.

“Mudou elenco, mudou muita coisa. Ele vai trabalhand­o por aproximaçõ­es. Nunca fixa, de um dia para o outro experiment­a o extremo oposto. É muito louco o processo dele.”

O diretor descreve um ano e meio de busca incessante.

“Eu acho o Lagarce shakespear­iano. Mas como encontrar uma mise-en-scène para ele, aí é que é o buraco”, diz, numa primeira conversa, na sala de ensaios vazia. Mise-enscène é a encenação, a história contada com todos os elementos pelo diretor.

“A peça não tem rubrica. A única é que, quando passa de um local para outro, ele coloca três pontinhos entre parênteses!” Rubricas são as indicações do autor para a encenação. “Como fazer isso? Eu quebrei a cabeça”, diz Antunes.

Lagarce, pouco reconhecid­o em vida, tornou-se desde a sua morte em 1995 um dos mais encenados autores franceses. A adaptação para o cinema de uma das peças, “É Apenas o Fim do Mundo”, levou o Grand Prix do Festival de Cannes, dois anos atrás.

“Eu Estava em Minha Casa e Esperava que a Chuva Chegasse” é de 1994, escrita pouco antes de ele morrer de Aids, aos 38 anos.

O homem é apenas um ponto de referência para o que importa —as cinco mulheres que o cercam, a serem interpreta­das por Fernanda Gonçalves, Daniela Fernandes, Viviane Monteiro, Suzan Damasceno e Rafaela Cassol.

São figuras bem definidas, a começar pela mãe, feita por Suzan, que volta ao CPT, o Centro de Pesquisa Teatral do Sesc, dirigido por Antunes. Elas têm longos solilóquio­s, quase peças à parte, e pouco diálogo. Na montagem, são bem caracteriz­adas, lembrando uma seita, até bruxas.

Antunes descreve Lagarce como poético, remetendo aos autores do chamado teatro do absurdo de que tanto gostava em seu início de carreira.

Na sala de ensaio, diante das muitas cadeiras que formam o cenário, criado com a cenógrafa e figurinist­a Simone Mina, o diretor lembra en- tão seus primeiros passos como assistente do polonês Ziembinski e “de todos os italianos” do TBC, há quase 70 anos.

“Foi muita sorte. O Zimba era um cara de teatro, que fazia teatro dia e noite. Ensaiava a tarde toda e ia para a sala de maquiagem às seis, para fazer o espetáculo às nove. Mandava eu comprar dois sanduíches no bar da frente, pegar café. Amava o teatro.”

Antunes defende insistente­mente que os jovens atores de hoje tenham sorte semelhante, convivam e discutam com os veteranos do teatro. “A profissão deles é a mais linda do mundo”, diz, lamentando terem de atuar numa peça atrás da outra, para sobreviver.

Questionad­o sobre se pensa em parar, responde: “Se parar, no dia seguinte você me encontra morto numa esquina. O Molière é que tinha razão, tem que morrer nas tábulas, no palco. Morrer fora do palco é uma bosta”.

Em meio a risadas, acrescenta: “É verdade, o palco é o portal da eternidade. Eu tenho que me enfiar por ele e ver aonde vou. O teatro que te leve!”.

Já na saída, tenta dirigir também o repórter. “Ponha isso com humor. Você tem que ser humorista quando for escrever, se não fica pesado.”

O espetáculo faz as duas primeiras apresentaç­ões em Santos, na quinta edição do Mirada Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, e estreia em São Paulo no próximo dia 21.

Eu Estava em Minha Casa e Esperava que a Chuva Chegasse

Teatro Sesc Santos. R. Conselheir­o Ribas, 136, Santos (SP). Qui. (13) e sex. (14): 21h. R$ 50. Ingressos pelo portal sescsp.org.br e nas unidades do Sesc Teatro Anchieta - Sesc Consolação. Rua Dr. Vila Nova, 245, São Paulo.

Sex. e sáb.: 21h. Dom.: 18h. R$ 40. A partir de 21/9. Até 16/12.

O Molière é que tinha razão, tem que morrer nas tábulas, no palco. Morrer fora do palco é uma bosta Antunes Filho, diretor

Na idade dele, e com o mundo do jeito que está, não era para ter mais esperança nenhuma. E ele continua Ricardo Muniz Fernandes, curador

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O diretor Antunes Filho em sala de ensaio do CPT, o Centro de Pesquisa Teatral do Sesc, dirigido por ele

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