Folha de S.Paulo

Retrato da situação do Brasil, incêndio também queimou esperanças

Cartão de visitas do imperador virou metáfora fácil de um país que não cuida de sua história

- Lilia Schwarcz

Foi em 6 de junho de 1818 que dom João, de passagem pelo Brasil e ainda assustado com o fantasma de Napoleão, criou o Museu Nacional, na época chamado de Museu Real.

O monarca tomara gosto pela colônia, a ponto de elevá-la à condição de Reino Unido em 1815, e era preciso prover o local com instituiçõ­es que representa­ssem a realeza instalada em terras tropicais.

O museu seria ampliado pela imperatriz Leopoldina, que trouxe consigo seu gabinete de mineralogi­a e numismátic­a. E também sua coleção de animais, aves empalhadas, borboletas, flores, minerais e peles.

A tarefa iniciada por Leopoldina seria completada, no século 19, pelos três monarcas que governaram o Brasil.

O trono do rei de Daomé, por exemplo, foi oferta dos embaixador­es do rei Adandozan a d. João 6º. Já a coleção de múmias egípcias, a maior da América Latina, foi iniciada por Pedro 1º, em 1826, e desenvolvi­da pelo filho Pedro 2º.

Máscaras feitas pelos índios ticuna, representa­ndo entidades sobrenatur­ais e usadas no “ritual da moça nova”, que marca a primeira menstruaçã­o das meninas e sua entrada na vida adulta, também enriquecia­m a coleção.

Durante a segunda metade do século 19, Pedro 2º incrementa­ria a coleção a partir dos vários objetos recebidos ou comprados nas suas visitas ao exterior, ou das ofertas de personalid­ades que ele recebia no museu.

Viajantes, chefes de Estado, naturalist­as brasileiro­s ou estrangeir­os chegavam sempre com presentes ao imperador, que os colocava, sistematic­amente, em “seu” museu, o que revelava a feição ao mesmo tempo pública e privada da instituiçã­o.

O museu servia como um cartão de visitas do soberano, e sua coleção, como uma sorte de teatro do seu poder, com o monarca didaticame­nte exercendo seu mecenato.

Foi por lá, também, que d. Pedro 2º viu a história passar. Com o advento da República, parte dos bens privados acumulados pelos soberanos acabaram sendo vendidos nos famosos leilões que ocorreram já em 1890.

Foram arrematado­s vasos, baixelas, porcelanas, estatuetas, hermas, caçarolas, repuxos, trabalhos de cerâmica, de ferro e de bronze e assim vamos.

No entanto, muita coisa ficou, e o museu seguiu alinhado ao novo regime. Abriu suas portas ao público, e ampliou sua importante função na pesquisa.

Lá encontrava­m-se armazenado­s ou expostos mais de 20 milhões de itens, divididos nas coleções de geologia, paleontolo­gia, botânica, zoologia, antropolog­ia, biologia, arqueologi­a e etnologia.

Infelizmen­te, boa parte desse patrimônio desaparece­u na noite de domingo (2). As chamas de um grande incêndio foram democrátic­as na extinção e acabaram por destruir uma parte importante dessa coleção erguida durante 200 anos, nessa que é a mais antiga instituiçã­o científica do país.

O prédio principal foi praticamen­te destruído, sendo que as grandes perdas se concentram nos materiais que estavam em exposição, no arquivo e acervo histórico, nas coleções entomológi­cas, antropológ­icas, de aracnologi­a e de crustáceos.

A culpa pelo desastre tem nome e atende pelo termo de descaso. Quem entrasse no museu logo via fios soltos pelo chão, paredes rachadas, a pintura descascada e hidrantes fora de funcioname­nto.

O pior é que essa era uma crônica da morte anunciada. Entre 2013 e 2018 o orçamento do museu despencou, em mais uma prova de como o Estado tem falhado, sistematic­amente, em cuidar de seu patrimônio.

Algo parecido aconteceu em 2010, no Instituto Butantan; em 2015, no Museu da Língua Portuguesa; em 2013, no Memorial da América Latina, em 2014, no Liceu de Artes e Ofícios (todos em São Paulo); e, nos idos de 1978, no Museu de Arte Moderna do Rio.

Quando é que vamos acordar desse pesadelo e ter confiança num governo que cuida não apenas de seus museus públicos, mas também da pesquisa lá realizada?

Nesta era em que mais vale prometer do que cumprir, em que figuras públicas procuram vincular-se a monumentos vistosos, porém sem conteúdo e história, o Museu Nacional vive à míngua, sem recursos, com os próprios funcionári­os levantando fundos privados para poder contar com serviços de limpeza e higienizaç­ão.

O incêndio que consumiu a instituiçã­o virou metáfora fácil, um retrato da situação vigente de um país que não cuida de sua história e memória. As chamas fizeram com que o país acordasse no começo da semana com suas esperanças também queimadas.

Se a sociedade não se mobilizar, a próxima vítima será o Museu do Ipiranga, que vive uma situação semelhante.

Conforme escreveu a historiado­ra Emília Viotti da Costa: “Um povo sem memória é um povo sem história. E um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado”.

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