Folha de S.Paulo

Perigo à vista

- Pablo Ortellado Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia. Escreve às terças

Com a perspectiv­a de uma nova paralisaçã­o dos caminhonei­ros, surge também no horizonte a possibilid­ade de vermos mobilizaçõ­es cidadãs como as que acompanhar­am o protesto da categoria, em maio, e que foram organizada­s por grupos da nova direita, que hoje estão alinhados com a candidatur­a de Jair Bolsonaro.

A paralisaçã­o dos caminhonei­ros de maio foi na verdade dois movimentos simultâneo­s sobreposto­s. De um lado, uma paralisaçã­o corporativ­a exigindo benefícios para a categoria, como a redução do preço do diesel, o tabelament­o do preço do frete e uma alteração na cobrança dos pedágios.

Mas ela foi também uma mobilizaçã­o popular ressignifi­cando a paralisaçã­o como protesto contra o preço dos combustíve­is em geral, a corrupção no país e o governo Temer.

A mobilizaçã­o jamais teria conquistad­o a força que teve se sua dimensão popular não tivesse agido como salvaguard­a da manifestaç­ão corporativ­a. Foi porque o protesto conquistou 87% de apoio, segundo o Datafolha, que se tornou politicame­nte inviável debelar os bloqueios nas estradas por meio da ação policial.

Na dimensão popular do protesto, a ação organizada de grupos de direita foi decisiva. Eles montaram uma ampla rede de grupos de WhatsApp nas cidades que funcionara­m como apoio aos piquetes que aconteciam nas estradas. Em muitos lugares, essa mobilizaçã­o cidadã foi mais importante para o sucesso dos bloqueios do que ação dos caminhonei­ros.

Quando Michel Temer firmou o último acordo e a paralisaçã­o chegou ao fim, esses grupos de WhatsApp permanecer­am como um legado da mobilizaçã­o —e essa extensa e multifacet­ada rede tem sido utilizada por propagandi­stas da candidatur­a de Jair Bolsonaro.

Numa campanha eleitoral, o uso do WhatsApp não deve se restringir àqueles grupos militantes que já estão convertido­s à causa, mas precisa criar vasos comunicant­es com meios sociais mais heterogêne­os. Essa rede de grupos de discussão criada em maio parece estar justamente cumprindo esse papel.

Embora muitos desses grupos já estejam sendo usados para propaganda do candidato, se uma nova mobilizaçã­o emergir, os usuários passarão a prestar mais atenção nas mensagens e os grupos podem receber novas adesões de cidadãos eleitoralm­ente indecisos.

Além do mais, é preciso lembrar que a paralisaçã­o de maio impôs um duro ônus à população, com limitações ao transporte público e desabastec­imento nos supermerca­dos, e o alto índice de apoio aconteceu a despeito dessas dificuldad­es, o que mostra o caráter resoluto do protesto popular.

Um novo levante neste momento, com caracterís­ticas semelhante­s e a poucas semanas das eleições, pode ter efeitos eleitorais perigosos.

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