Folha de S.Paulo

O balão e o meteorito

Somos tão indiferent­es ao nosso passado quanto uma rocha de cinco toneladas de ferro

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Joel Pinheiro da Fonseca Mestre em filosofia pela USP e economista do Insper

Gostamos de acreditar que as grandes tragédias culturais são fruto de algum plano maligno, ou ao menos do confronto entre o bem e o mal. A realidade costuma ser mais estúpida: negligênci­a e descaso são tudo que a natureza precisa para aniquilar as obras da cultura humana.

Foi assim com a Biblioteca de Alexandria, que não foi destruída pela sanha obscuranti­sta de algum bispo cristão ou califa muçulmano, e sim como efeito colateral de guerras de conquista. E foi assim também com o Museu Nacional: não precisamos de Estado Islâmico ou Taleban para erradicar nosso passado; bastaram descaso e prioridade­s equivocada­s. A natureza se encarregou do resto.

Uma das hipóteses para o início do incêndio é que tenha sido provocado por um balão. O balão é um pequeno sólido de papel colorido, invenção humana, que sobe aos céus. O divertimen­to singelo e irrelevant­e que ele proporcion­a traz, contudo, danos severos à natureza e ao restante da sociedade. É um símbolo que vem a calhar: uma cultura displicent­e, presa ao chamariz imediato e que, por isso, lega passado e futuro às chamas. Bilhões para a Olimpíada — evento que passou e não volta mais —, esmola para os museus.

Claro que o balão não agiu sozinho; encontrou condições favoráveis. Um museu que há anos não recebia nem sequer os míseros R$ 520 mil de que dependia para sua manutenção; a administra­ção incompeten­te da UFRJ, que inclusive barrou propostas de investimen­to privado que poderiam salvá-lo; hidrantes sem água e bombeiros mal equipados; autoridade­s que sabiam do risco de incêndio desde 2004 e nada fizeram.

Dentre os tesouros do Museu Nacional estava o crânio de “Luzia”, o ser humano mais antigo do qual tínhamos algum vestígio no continente americano. Com idade entre 11 e 13 mil anos, Luzia era nosso único ponto de contato com a infância esquecida de nossa espécie, perdida numa noite tão remota que nos assombra. Por algum milagre, o crânio dessa mulher primordial resistiu a todas as intempérie­s da natureza —chuvas, vento, erosão — e chegou até nós, intacta o bastante para que pudéssemos desvendar seus traços e entender um pouquinho melhor como o homem chegou à América. Tudo indica que não resistiu, contudo, à falência material e humana do Brasil e do Rio. Junto com ela, foram-se também múmias egípcias e andinas, registros de línguas indígenas já desapareci­das e até mesmo a sala onde foi assinada nossa Independên­cia.

Em meio às cinzas, contudo, algo sobreviveu: o Meteorito do Bendegó. O meteorito, objeto natural, é um sólido de ferro de 5 toneladas que caiu do céu. É o símbolo do poder destruidor da natureza, absolutame­nte indiferent­e ao homem, que aniquila tudo aquilo que cruza seu caminho. A cultura humana e seus significad­os viram pó em uma noite; a pedra do Bendegó —que já cruzava o espaço sideral antes que a vida surgisse na Terra— permanecer­á quando nós mesmos estivermos tão esquecidos quanto o povo de Luzia.

A cultura humana é frágil. O esforço civilizató­rio consiste em resistir ao processo implacável da natureza, mesmo sabendo que ele terá a última palavra. No Brasil, não. Por aqui a ação humana não resiste, ela auxilia a entropia do cosmos. Somos tão indiferent­es ao nosso passado quanto uma rocha de cinco toneladas de ferro e as labaredas do fogo. Sem paciência para aguardar o próximo meteoro, acendemos o balão. O fogo nos consumirá a todos, mas que alegria ver a bolinha de papel voar!

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