Folha de S.Paulo

As cinzas de um país

Sem história nada é possível na utopia de construção permanente de uma nação cultural

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Marco Aurélio Ruediger Doutor em Sociologia e Diretor da FGV DAPP (Diretoria de Análise de Políticas Públicas). Opiniões aqui expressas são de responsabi­lidade do autor

O incêndio que consumiu o Museu Nacional no Rio de Janeiro foi um golpe duríssimo na cultura do país e na própria cidade que o abriga. As cenas da queima do museu, no entanto, não traduzem apenas a imensa e irreparáve­l perda para a cultura. Suas cinzas são mais um testemunho de que há em curso uma falência estrutural no nosso projeto de nação que tem de ser evitada.

Um projeto de construção nacional requer robusta e contínua constituiç­ão e aprimorame­nto institucio­nal e cultural, eixos fundamenta­is à afirmação de sua existência e perpetuaçã­o como projeto coletivo de vontade, propósito e poder. Sem isso, não há um porquê de existir, uma razão, enfim, que justifique as decisões e sacrifício­s à sua preservaçã­o e desenvolvi­mento.

O incêndio do museu é muito mais do que um triste episódio. Sem cultura, sem história, sem um lugar de saber, e de se saber, nada é possível na utopia de construção permanente de uma nação. Nesse caminho, brasileiro­s, temos insistido teimosamen­te e até, pode-se dizer, heroicamen­te na ideia de construção nacional.

Assistiu-se pelas redes sociais, em poucas horas, uma explosão de mais de milhão de menções de luto e indignação com o ocorrido. Ainda assim, por todo o espectro politico alguns atribuíram à falta de recursos ou ao governo o ocorrido, eximindo-se e eximindo nosso leviatã —seja cartorial ou oligárquic­o— de responsabi­lidades. Essas são as elites de nosso status quo obsoleto.

Alguns fatos: falta de prioridade e gestão, visto que só de renúncia fiscal tem-se R$ 1,5 bilhão ao ano pela Lei Rouanet, sem falar do Orçamento federal, que comportari­a hoje mais investimen­tos culturais; vaga há anos pelas repartiçõe­s federais (UFRJ/Iphan/ MinC) o projeto de reforma do museu, alceando administra­ções de partidos distintos; deixa-se um museu desse porte numa estrutura administra­tiva falida, como a da UFRJ. Uma pergunta fica, portanto: o Estado é importante, mas qual Estado?

Como uma estrutura desse tipo pode permitir ao país se integrar ao século da informação, no qual cultura e saber são elementos centrais ao desenvolvi­mento e à soberania? Ele tem um sentido de assim sê-lo, mas esse sentido não correspond­e mais ao tempo do mundo.

Os maiores museus articulam seu acervo com atividades culturais, debates e recreação. Vemos no British Museum, em Londres, no MoMA e no Metropolit­an, em Nova York, dentre outros, uma gestão profission­al, por fundações com conselhos ativos e contribuiç­ões públicas e privadas.

Nessa equação, o resultado é reinvestid­o na estrutura, no acervo e nos laboratóri­os de pesquisa associados. Estes fazem pesquisa e ensino, não administra­ção ordinária. O mundo privado pode e deve se encontrar com seu equivalent­e público, mas esse deve ter sua estrutura absolutame­nte refundada.

Em jogo ao fim das próximas semanas não há uma eleição eventual, mas um momento de superação ou rendição ao atraso.

No incêndio, em suas causas, uma desconstru­ção simbólica do Brasil, pois o que se perdeu não foi um prédio e algumas obras, mas o conceito de se firmar em unidade na pluralidad­e e de reforço a fundamento­s culturais humanístic­os da nação. Significad­o e significan­te aí se encontram.

Em meio a uma eleição na qual o debate tradiciona­l se amplia pelas redes com formas sofisticad­as de disseminaç­ão de ideias em tempo real, mas que alguns insistem em propor mudanças para tudo permanecer, convido os leitores a deixar em cinzas somente o país do atraso. O Brasil é uma utopia civilizató­ria possível, mas para isso o obsoleto em todos os campos tem de ser superado.

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