Bento 16 vira símbolo da oposição a Francisco
Desde que Bento 16 se tornou o primeiro papa em seis séculos a abdicar, em 2013, e passou a viver isolado em um mosteiro da Cidade do Vaticano, paira a dúvida do impacto que tem na Igreja Católica a presença de dois papas. A semana passada trouxe indícios da resposta.
Muita gente esperava uma reação de Bento às alegações de que o acobertamento dos casos de abuso sexual teria alcançado a Santa Sé. Mas ele determinou que um papa emérito deve se ater ao silêncio mesmo em tempos de crise, apesar de poder confirmar ou desmentir as acusações.
Observadores do Vaticano dizem que o fato de Bento ter abdicado, por si, torna o papado moderno mais vulnerável, estimulando a dissensão. Para esses, é difícil imaginar uma carta como a do arcebispo Carlo Maria Viganò, que pediu a renúncia de Francisco acusando-o de acobertar crimes sexuais, se Bento não tivesse criado a possibilidade.
O antecessor de Francisco tem sido usado como símbolo por um segmento tradicionalista da Igreja que se opõe ao reformismo do papa atual.
“Bento não vai barrar a revolução de Francisco, mas sua presença nos recorda a possibilidade de outro caminho”, comentou Marcello Pera, amigo de Bento e ex-presidente do Senado italiano.
Bento 16 não teve a adesão global dos católicos em seus oito anos de papado, mas ganhou admiração pela profundidade de seu trabalho teológico e coerência ideológica.
Ainda assim, seu legado, para alguns historiadores, será definido por sua renúncia — algo inédito no papado desde Gregório 12, em 1415.
Ao renunciar Bento 16 virou do avesso o papado. Disse que tinha consciência da gravidade do ato e citou sua deterioração mental e física. Mas não dissipou rumores de que outros fatores pesaram na decisão, incluindo chantagem ou pressões ligadas a escândalos na burocracia do Vaticano —especulações que chamou de “absurdas”.
Hoje, o papa emérito busca se distanciar da vida pública. Recebe visitantes ocasionais em sua casa, onde vive com um gato, cercado por livros e com vista para a basílica de São Pedro. Caminha à tarde no jardim do Vaticano e aparece em algumas fotos oficiais com Francisco. Ocasionalmente, vai a missas.
Elio Guerriero, biógrafo que o conhece há 30 anos, diz que o pontífice está contente. Quem o visita afirma que ele evita insuflar insurreições. Quando cardeais lhe pediram que interviesse para que Francisco não relaxasse o veto à comunhão de divorciados, há quatro anos, Bento respondeu que não devia se envolver e alertou o sucessor.
Marcello Pera, coautor de um livro de Bento 16, relata a indisposição do pontífice em comentar decisões do sucessor. “Estou preocupado com a Igreja”, disse ele a Bento após a consagração de Francisco. “A Igreja é de Jesus Cristo”, ouviu em resposta. “Você não deve se preocupar.”
O silêncio do papa emérito condiz com sua discrição, mas chama a atenção porque ele é citado na carta de Viganò, segundo a qual os dois papas sabiam dos abusos cometidos pelo ex-cardeal americano Theodore McCarrick.
Porque a carta o retrata de forma mais positiva que Francisco, e aliados interpretam seu silêncio como aval.
“Seria fácil ele dizer ‘há um ataque ao Santo Padre e quero condenar esse ataque’”, disse Roberto de Mattei, presidente da conservadora Fundação Lepanto, crítico de Francisco e conhecido de Viganò. “No momento, um papa pode falar em defesa de outro. Mas Bento não o fez.”
Essa inação leva alguns conservadores a apontá-lo como aliado simbólico —há conferências frequentes para criticar Francisco e elogiar Bento.
Mesmo o grupo que conhece Bento não sabe o que ele pensa da carta. Pera disse que não voltou a citar Francisco nos encontros dos dois. “É proibido.” “Concluo que Bento 16 provavelmente não gosta do que está acontecendo. No entanto, não sabemos.”