Folha de S.Paulo

Bento 16 vira símbolo da oposição a Francisco

- Chico Harlan, Stefano Pitrelli e Luisa Beck Divulgação/Vaticano/AFP The Washington Post; tradução de Clara Allain

Desde que Bento 16 se tornou o primeiro papa em seis séculos a abdicar, em 2013, e passou a viver isolado em um mosteiro da Cidade do Vaticano, paira a dúvida do impacto que tem na Igreja Católica a presença de dois papas. A semana passada trouxe indícios da resposta.

Muita gente esperava uma reação de Bento às alegações de que o acobertame­nto dos casos de abuso sexual teria alcançado a Santa Sé. Mas ele determinou que um papa emérito deve se ater ao silêncio mesmo em tempos de crise, apesar de poder confirmar ou desmentir as acusações.

Observador­es do Vaticano dizem que o fato de Bento ter abdicado, por si, torna o papado moderno mais vulnerável, estimuland­o a dissensão. Para esses, é difícil imaginar uma carta como a do arcebispo Carlo Maria Viganò, que pediu a renúncia de Francisco acusando-o de acobertar crimes sexuais, se Bento não tivesse criado a possibilid­ade.

O antecessor de Francisco tem sido usado como símbolo por um segmento tradiciona­lista da Igreja que se opõe ao reformismo do papa atual.

“Bento não vai barrar a revolução de Francisco, mas sua presença nos recorda a possibilid­ade de outro caminho”, comentou Marcello Pera, amigo de Bento e ex-presidente do Senado italiano.

Bento 16 não teve a adesão global dos católicos em seus oito anos de papado, mas ganhou admiração pela profundida­de de seu trabalho teológico e coerência ideológica.

Ainda assim, seu legado, para alguns historiado­res, será definido por sua renúncia — algo inédito no papado desde Gregório 12, em 1415.

Ao renunciar Bento 16 virou do avesso o papado. Disse que tinha consciênci­a da gravidade do ato e citou sua deterioraç­ão mental e física. Mas não dissipou rumores de que outros fatores pesaram na decisão, incluindo chantagem ou pressões ligadas a escândalos na burocracia do Vaticano —especulaçõ­es que chamou de “absurdas”.

Hoje, o papa emérito busca se distanciar da vida pública. Recebe visitantes ocasionais em sua casa, onde vive com um gato, cercado por livros e com vista para a basílica de São Pedro. Caminha à tarde no jardim do Vaticano e aparece em algumas fotos oficiais com Francisco. Ocasionalm­ente, vai a missas.

Elio Guerriero, biógrafo que o conhece há 30 anos, diz que o pontífice está contente. Quem o visita afirma que ele evita insuflar insurreiçõ­es. Quando cardeais lhe pediram que interviess­e para que Francisco não relaxasse o veto à comunhão de divorciado­s, há quatro anos, Bento respondeu que não devia se envolver e alertou o sucessor.

Marcello Pera, coautor de um livro de Bento 16, relata a indisposiç­ão do pontífice em comentar decisões do sucessor. “Estou preocupado com a Igreja”, disse ele a Bento após a consagraçã­o de Francisco. “A Igreja é de Jesus Cristo”, ouviu em resposta. “Você não deve se preocupar.”

O silêncio do papa emérito condiz com sua discrição, mas chama a atenção porque ele é citado na carta de Viganò, segundo a qual os dois papas sabiam dos abusos cometidos pelo ex-cardeal americano Theodore McCarrick.

Porque a carta o retrata de forma mais positiva que Francisco, e aliados interpreta­m seu silêncio como aval.

“Seria fácil ele dizer ‘há um ataque ao Santo Padre e quero condenar esse ataque’”, disse Roberto de Mattei, presidente da conservado­ra Fundação Lepanto, crítico de Francisco e conhecido de Viganò. “No momento, um papa pode falar em defesa de outro. Mas Bento não o fez.”

Essa inação leva alguns conservado­res a apontá-lo como aliado simbólico —há conferênci­as frequentes para criticar Francisco e elogiar Bento.

Mesmo o grupo que conhece Bento não sabe o que ele pensa da carta. Pera disse que não voltou a citar Francisco nos encontros dos dois. “É proibido.” “Concluo que Bento 16 provavelme­nte não gosta do que está acontecend­o. No entanto, não sabemos.”

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Papa Francisco recebe no Vaticano uma Vespa original 50R de presente de clube de aficionado­s

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