Folha de S.Paulo

Presidente fala em última crise, #sqn (hashtag só que não)

- Clóvis Rossi

No pronunciam­ento desta segunda-feira (3), o presidente argentino, Mauricio Macri, assumiu, pela primeira vez, que há uma crise no país e decretou: “Tem que ser a última”.

Como fã da Argentina, gostaria que ele tivesse razão, mas, como testemunha ocular das incontávei­s crises dos últimos 40 anos, sou obrigado a usar a já popular hashtag #sqn (só que não).

Para ser bem sincero, não entendo como é que a Argentina vive de crise em crise. De vez em quando, me vem a sensação de que alguma maldição divina pesa sobre o país.

Lembro-me até de um jantar em Madri, com meu maestro em jornalismo internacio­nal, Newton Carlos, e o jornalista argentino José María Pasquini Durán, exilado por causa da ditadura (a do período 1976/83), uma das inúmeras que desgraçara­m o país.

Pasquini pediu de sobremesa doce de leite, delícia típica argentina, e sorveu-o como se fosse a última refeição de um condenado à morte. Sentia-se condenado ao exílio perpétuo pela expectativ­a de que a ditadura não teria fim.

A ditadura acabou em 1983. A democracia não foi capaz de evitar, nos 35 anos seguintes, que a intervalos mais ou menos regulares espoucasse uma crise que se torcia para ser a última, mas nunca era.

Nesse período, a Argentina tentou todas as mágicas possíveis para endireitar a economia e torcer o braço da inflação, o grande demônio.

Tentou congelamen­tos, com Raúl Alfonsín. Fracassou e foi obrigado a renunciar seis meses antes do tempo.

Tentou o ultraliber­alismo com Carlos Saúl Menem, que fez todas as privatizaç­ões possíveis, mas teve de ir ao extremo de dolarizar a economia, o que não faz parte do receituári­o liberal. Um dólar tinha de valer um peso para todo o sempre.

Até funcionou o tempo suficiente para que Menem se reelegesse. A economia cresceu, a inflação foi domada.

Seduziu até segmentos do empresaria­do brasileiro. Em janeiro de 1999, quando se iniciava o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso e houve uma corrida contra o real, no Fórum de Davos houve um jantar para discutir a economia brasileira.

Os empresário­s brasileiro­s fizeram questão de levar Domingo Cavallo, o ministro de Menem que conduzira a dolarizaçã­o, para falar sobre a mágica, na expectativ­a de que entrasse para a agenda brasileira. Senti vergonha alheia. Detalhe: um dos executivos presentes ao jantar era Henrique de Campos Meirelles, então no BankBoston.

É verdade que Meirelles não abriu a boca enquanto seus colegas babavam na gravata com Cavallo. Mas tampouco condenou a iniciativa.

O fracasso da dolarizaçã­o foi estrepitos­o, assim como a sua desmontage­m. Tanto que provocou uma revolta popular que fez o presidente Fernando de la Rúa fugir de helicópter­o da Casa Rosada, enquanto a rua fervia aos gritos de que “se vayan todos”.

A mágica seguinte foi o calote da dívida externa, o maior da história naquele momento (2001). Combatido pelo pensamento econômico dominante, até deu certo provisoria­mente.

O dinheiro que iria para pagar a dívida foi direcionad­o (governo Néstor Kirchner) para programas sociais, na tentativa de combater uma chaga nova na pele de um país rico: o aumento da pobreza.

A viúva e sucessora de Néstor, Cristina Fernández de Kirchner, até conseguiu acertar com os credores, a maior parte dos quais aceitou um corte grande.

O atual presidente Macri fechou o capítulo do calote pagando aos credores remanescen­tes, os chamados “fundos abutres” (compram papéis por um fração do preço pago pelo credor original, mas exigem receber pelo valor de face).

Se a moratória deu fôlego aos Kirchner, nem por isso deixaram de apelar para outras mágicas: artificial controle cambial e de preços de serviços públicos, por exemplo.

O fôlego financeiro foi suficiente para que Cristina se reelegesse, mas o artificial­ismo provocou dificuldad­es econômicas que ajudaram a derrotar seu candidato à sucessão.

Ganhou então Mauricio Macri, que voltou ao liberalism­o, mas com um enfoque gradual na redução do déficit público.

Esperava que os mercados, que lhe eram simpáticos, lhe dessem tempo. Não deram: “Desde abril, lhe vêm cantando xeque-mate”, como escreveu no domingo (2) Eduardo van der Kooy, colunista do Clarín. Agora, Macri derruba o rei, com o recurso ao FMI e a proclamaçã­o de “déficit zero” já em 2019.

Como esse mantra frequenta também a campanha no Brasil, convém que os candidatos prestem atenção: países com necessidad­es de financiame­nto não conseguem, a não ser por pouco tempo, contrariar os mercados. É cruel, mas é o que temos para hoje e pelo horizonte visível.

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