Folha de S.Paulo

Mostra transforma corpo feminino em sujeito

Ao virar essa chave, exposição ‘Mulheres Radicais’ revela sua potência e o papel central da performanc­e como linguagem

- Gabriela Longman

Mulheres Radicais : Arte Latino-Americana, 1960-1985 Pina Luz, pça. da Luz, 2, região central, tel. (11) 3324-1000. Seg. e qua. a dom.: 10h às 17h30. Até 19/11. Livre. Ingr.: R$ 6. Sáb.: grátis

Na sequência de fotografia­s da série “Fotopoemaç­ão”, a artista ítalo-brasileira Anna Maria Maiolino segura uma tesoura prestes a cortar seu próprio nariz e sua própria língua. No contexto da ditadura chilena, duas meninas lambem picolés coloridos que encondem soldadinho­s de brinquedo em seu interior.

Produzida originalme­nte pelo Museu Hammer, em Los Angeles, e com passagem pelo Museu do Brooklyn, em Nova York, no início do ano, a exposição “Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana, 1960-1985” desembarca no Brasil no momento em que o voto feminino, aquele mesmo defendido pelas sufragista­s no início do século 20, ajudará a definir a eleição mais conturbada das últimas décadas.

Até o dia 19 de novembro, a Pinacoteca ostenta o trabalho de mais de 120 mulheres de 15 países latino-americanos produzidos entre 1960 e 1985.

O recorte temporal não é aleatório: em consonânci­a com a libertação nos costumes pré e pós-1968, o quarto de século em questão marcou o período de endurecime­nto político e o estabeleci­mento de governos autoritári­os em praticamen­te todo o continente.

Em sete anos de trabalho, as curadoras Cecilia FajardoHil­l e Andrea Giunta estabelece­ram justamente a noção de corpo político como foco central. Com pesquisas iniciadas em 2010, a ideia era que a mostra fosse inaugurada dois anos depois, mas a escala e a complexida­de do projeto cresceram em tal medida que foram sete anos para rever os arquivos, viajar para conhecer e entrevista­r as artistas e amarrar a seleção.

Valeu a pena. Contundent­e sem ser panfletári­o, o conjunto apresentad­o é uma mistura de força e delicadeza, de afronta e acolhiment­o, de construção e desconstru­ção do feminino. Ou melhor, dos femininos, porque o que deriva da exposição é a própria ideia de pluralidad­e do conceito.

Sem querer encerrar o debate, a pesquisa exaustiva permite entender o que junta e o que separa mulheres de idades, escolas e realidades tão diferentes, da guatemalte­ca Margarita Azurdia à cubana Ana Mendieta, passando por nomes mais e menos conhecidos dentro do contexto brasileiro.

Organizada em torno de nove eixos temáticos, a mostra pretende “escrever um novo capítulo da história da arte do século 20, um capítulo que leve em consideraç­ão as contribuiç­ões das artistas latinoamer­icanas, chicanas e latinas para as linguagens experiment­ais da arte contemporâ­nea”, nas palavras das curadoras.

Revisitand­o dois dos autores centrais na construção da história da arte latino-americana, Marta Traba e Damián Bayón, entre outros, a dupla constata o protagonis­mo dos artistas homens nessa narrativa canônica e insiste em uma revisão ou reescritur­a.

Para dar conta da missão ambiciosa, partem de revisões sobre gêneros clássicos (o autorretra­to, a paisagem, o nu) e de um olhar sobre o erotismo, procurando reposicion­ar a perspectiv­a masculina e patriarcal que paira sobre essa esfera.

Parece acertada a decisão de concentrar no corpo o centro gravitacio­nal da seleção de obras. Pois é principalm­ente ao mudar a chave do corpo feminino como objeto para o corpo feminino como sujeito (e aqui entra, por exemplo, o papel central da performanc­e como linguagem) que a exposição revela sua potência.

Ao apresentar o corpo como campo de batalha (da mulher por e contra a sociedade, mas também por e contra si mesma), vem à tona ao mesmo tempo sua vertente poética e seu componente engajado. Nessa dupla chave de leitura, corpos fragmentad­os em fotos, vídeos, performanc­es e aquarelas são uma espécie de constante —já não há lugar para a inteireza clássica do nu ou para uma visão romântica da maternidad­e.

Ao costurar artistas dispersas na historiogr­afia de seus respectivo­s países, a pesquisa permite entrever como a vertente feminina ou feminista abriria caminho para a afirmação das estéticas gay, queer e transexual nas décadas seguintes, como processos que dissolvem ou pelo menos relativiza­m as representa­ções normativas da sexualidad­e.

Por outro lado, o conjunto torna evidente como o meio da arte contemporâ­nea em praticamen­te todos os países representa­dos é um território ocupado por mulheres brancas, vindas da classe média.

É interessan­te pensar que tanto as indígenas da Amazônia fotografad­as por Claudia Andujar quanto a doméstica negra registrada pela panamenha Sandra Eleta estão ali representa­das, não representa­ntes. A pluralidad­e, afinal, vai apenas até certo ponto.

Sabemos que na especifici­dade latino-americana, a relação entre corpo e violência é central. Algumas artistas, afinal, foram detidas ou forçadas a buscar o exílio por incomodar as ditaduras vigentes, caso das uruguaias Leonilda González e Lacy Duarte, da chilena Cecilia Vicuña ou da argentina Marcia Schvartz.

A um mês da eleição, não deixa de ser sintomátic­o que “Mulheres Radicais” ocupe um dos principais museus da cidade enquanto “Histórias AfroAtlânt­icas” ocupa o outro. Em ambos, nota-se que o público do vernissage já não é o que costumava frequentar esse tipo de evento dez anos atrás.

Vinculadas às pautas contundent­es, as novas exposições atraem audiências mais jovens e diversas, capazes de arejar um ambiente que tantas vezes cheirava a creolina.

De outro lado, é preciso torcer para que a dita “questão das minorias” não se transforme em vertente única da pauta cultural e faça qualquer outra discussão que não parta do engajament­o explícito parecer menor. É um risco ao qual é preciso atentar.

 ?? Babette Mangolte ?? Performanc­e ‘Passing Through’, de 1977, da artista chilena Sylvia Palacios Whitman, que integra a mostra ‘Mulheres Radicais’
Babette Mangolte Performanc­e ‘Passing Through’, de 1977, da artista chilena Sylvia Palacios Whitman, que integra a mostra ‘Mulheres Radicais’

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil