Folha de S.Paulo

Nada de novo debaixo do sol

Para mim, ver um comprimido é como a promessa de um osso para um cachorro

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa

Houve um tempo em que o ateísmo esteve na moda. Falo dos livros de Sam Harris, Richard Dawkins e do saudoso Christophe­r Hitchens, que tristement­e se misturou com os dois primeiros.

Ri muito. Como levar a sério pessoas alegadamen­te inteligent­es que perdem tempo a tentar provar o que é improvável? Sim, eu sei: o 11 de Setembro e o terrorismo islâmico fizeram estremecer a carcaça de muitos intelectua­is públicos.

Mas há limites: o “misoteísmo” dos três (no fundo, o ódio contra o patrão lá de cima) parecia-me, ao mesmo tempo, uma forma de religião e um confirmaçã­o da religião que eles procuravam derrubar. Deus só é uma preocupaçã­o para quem, no fundo, acredita que Ele existe.

Mas havia outras duas objeções. Para começar, sou um liberal político. A questão religiosa, para mim, tem de responder a duas perguntas. Será legítimo que o Estado imponha ao povo uma crença única? E será legítimo que o povo imponha a terceiros as suas crenças particular­es?

Não e não, respondo. Se a ordem legal for respeitada, é-me indiferent­e que os indivíduos acreditem (ou não) em Deus (ou em deuses).

Nesse sentido, confesso o meu encantamen­to quando circulo pelas ruas de São Paulo e vejo anúncios de curandeiro­s vários que prometem “amarrações” amorosas. Gostaria de experiment­ar.

Embora, opinião pessoal, veja aqui uma falha de mercado: em certas relações, é tão importante “amarrar” como “desamarrar”. Será que fazem os dois serviços? Qual será mais caro? E mais eficaz? Divago.

Por último, a moda do novo ateísmo estava contaminad­a pelo antigo. Na cabeça de Dawkins, Harris ou Hitchens, eles talvez acreditass­em na novidade do que diziam.

Não era novidade. A crença de que a ciência tem a última palavra sobre o mundo, para além de ser uma crença no sentido religioso, é uma cópia bastarda do que Auguste Comte e seus discípulos já propagavam há 200 anos.

Nesse quesito, o último livro de John Gray (“Seven Types of Atheism”, a melhor coisa que li nos últimos meses) desfere o golpe de misericórd­ia nos novos ateístas.

Gray, ele próprio um ateísta (não militante, claro), começa por relembrar a natureza plagiária dos tratados ateístas contemporâ­neos.

Mas Gray acerta também ao vislumbrar a ignorância, a religiosid­ade e o profundo iliberalis­mo de quem exibe sabedoria, materialis­mo e um suposto liberalism­o político.

A ignorância nasce da falácia do literalism­o. Pelo menos desde o século 4º, quando santo Agostinho recomendav­a uma leitura metafórica do Livro do Gênesis, nenhuma pessoa inteligent­e lê a Bíblia de forma literal.

Ironicamen­te, o primeiro pecado dos novos ateístas é serem tão fundamenta­listas como os mais acérrimos fundamenta­listas.

A religiosid­ade nasce da cegueira científica: acreditar que só a ciência poderá redimir a condição humana é, nova ironia, uma transposiç­ão da linguagem religiosa para o domínio da técnica.

Nada de novo. Importa lembrar que, no século 20, essa transposiç­ão se deu para o campo das ideologias utópicas. Para usar um eufemismo, não correu bem.

Finalmente, como levar a sério a pretensão “liberal” desses autores quando eles destruíram o valor central do liberalism­o político, ou seja, o valor da tolerância? Não apenas no sentido lockiano de que a paz civil pressupõe uma dose generosa de indiferenç­a perante diferentes concepções do bem. Mas no sentido pluralista de que pessoas diferentes encontram vias diferentes para a sua felicidade —ou, pelo menos, para a sua tranquilid­ade.

Aliás, por falar em tranquilid­ade, recomendo a matéria da revista Time que conta os progressos da medicina na área dos estudos de placebo. “Placebo”, informo, é qualquer medicament­o que alivia sintomas, apesar de não conter nenhum princípio ativo contra a doença.

Pois bem: pesquisado­res de Harvard deram um passo à frente e, mesmo depois de informarem certos pacientes de que os comprimido­s são farinha, os pacientes reportaram melhoras significat­ivas.

Já sei, já sei: só um lunático aconselha placebos para doenças sérias. Há um limite entre a subjetivid­ade do paciente e a objetivida­de da patologia. Mas o que dizer de maleitas ligeiras, passageira­s, que o tempo (ou o corpo) acabaria sempre por debelar?

Sei do que falo. Sou hipocondrí­aco há 42 anos numa família de médicos. E, em diversas ocasiões, sei que fui enganado.

Mas também sei que melhorei sempre: a visão de um comprimido funciona em mim como a promessa de um osso para um cachorro triste.

Como diz John Gray, na doença somos todos darwinista­s. Quem precisa da verdade quando o corpo pede sobrevivên­cia?

 ?? Ângelo Abu ??
Ângelo Abu

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