Folha de S.Paulo

Tive em 1989 sabor amargo de votar quase cinquentão

Campanha foi a última em ambiente de Guerra Fria e establishm­ent temia ‘monstro Brizula’, junção dos nomes de Lula e Brizola; Collor foi o mais desabrido crítico do governo megaimpopu­lar de José Sarney

- Clóvis Rossi Repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot

O fato de só votar nessa idade tardia evidenciav­a a violação grave de meus direitos cívicos por 29 anos. A eleição legítima anterior fora em 1960. Eu tinha 17, e a idade mínima para votar era 18.

Saí para votar, no dia 15 de novembro de 1989, com a desagradáv­el sensação de que havia sido roubado. Estava com 46 anos, quase 47, mas votava pela primeira vez para presidente da República.

O fato de só poder votar nessa idade tardia deixava evidente que sofrera uma violação grave de meus direitos cívicos durante 29 anos. Afinal, a eleição presidenci­al legítima anterior fora em 1960. Eu tinha 17 anos e a idade mínima para votar era de 18 anos.

Para acentuar a sensação de roubo de direitos, o ambiente no dia da votação era de fato de alguma excitação, mas nada nem remotament­e parecido com o porre cívico que eu testemunha­ra antes nas eleições de retorno à democracia na Argentina (1983), no Uruguai (1984) e no Chile (1988). No Chile, na verdade, em 1988, deu-se não uma eleição presidenci­al, mas o plebiscito que cravaria um rotundo “não” à continuida­de da ditadura de Augusto Pinochet e, por extensão, determinar­a a eleição presidenci­al para 1989.

No Brasil, com o seu histórico atraso civilizaci­onal, a saída da ditadura se dera em 1985, não pela via mais legítima, a do voto popular, mas por decisão do Congresso. Festa até houve, mas não nas ruas.

A campanha de 1989 foi a última que se deu em ambiente de Guerra Fria. O Muro de Berlim, em cujos escombros ficaria o comunismo, só cairia seis dias antes da votação no Brasil. Entende-se, por isso, que ainda houvesse temor ao comunismo (irracional, do meu ponto de vista).

O establishm­ent estava em pânico com o que se batizou à época de “monstro Brizula”, justaposiç­ão dos nomes de Leonel Brizola e Luiz Inácio Lula da Silva. Eram os esquerdist­as mais notórios na enorme lista de pré-candidatos (chegaram às urnas 22 nomes).

Os dois saltaram à frente nas pesquisas, enquanto o centro e a direita tinham dificuldad­e em concretiza­r um nome competitiv­o. Até que surgiu do nada um certo Fernando Collor de Mello. Quando começou a subir nas pesquisas, Brizola, em almoço nesta Folha, desprezou a hipótese de vitória de Collor, dizendo que seria “a-histórica”.

Não deixa de ser verdade: Collor era o candidato de um partido que hoje seria batizado como “fake”, o PRN (Partido de Reconstruç­ão Nacional), governava um Estado (Alagoas) irrelevant­e na política nacional e era um desconheci­do no resto do país.

Como evidência (mais uma) da leseira institucio­nal do Brasil, o nome do partido de Collor era um sinal do desejo de refundar a República que assola a pátria de tempos em tempos.

Tanto que Collor era o mais virulento crítico do governo de turno, por sua vez nascido com outro rótulo de refundação (“Nova República”).

A ascensão de Collor, por ser insólita, levou os adversário­s e boa parte dos analistas a atribuí-la à Rede Globo de Televisão. Que a Globo fez o possível para eleger Collor, prova-o a manipulaçã­o do debate final do segundo turno, entre ele e Lula.

Mas, no início da campanha, a Globo parecia empenhada em colocar o governador paulista Orestes Quércia no lugar de Ulysses Guimarães como candidato do PMDB — afinal, o maior partido da República, que elegera, no pleito estadual e legislativ­o antebrido rior (1986), todos os governador­es, menos o de Sergipe, e a maioria absoluta dos senadores e deputados federais.

Ulysses era o candidato errado na hora errada. Se o presidente da época, José Sarney, tivesse se contentado com quatro anos de mandato, o pleito seria em 1988, e o velho cacique peemedebis­ta estaria no auge, como o responsáve­l maior pela Constituiç­ão que dava fim institucio­nal ao período autoritári­o.

Em 1989, o que abundavam eram as tratativas para decapitá-lo como candidato. Houve até uma reunião de governador­es no apartament­o de Ulysses em Brasília, convocada com a explícita finalidade de fazê-lo desistir.

Mal começou a reunião, o governador de Minas, Newton Cardoso, saiu às pressas e, ao passar pelos jornalista­s que fazíamos plantão, deixou escapar sonoro peido.

Forneceu-me a abertura do texto sobre a reunião: dizia que a tentativa de afastar Ulysses “terminara literalmen­te em um traque”.

Com Quércia fora do páreo, aí sim a Globo “colloriu”, assim como a maior parte da mídia (a exceção foi a Folha, entre os grandes) e do establishm­ent. Até artistas com passado de esquerda e de oposição ao regime militar (Marilia Pêra, por exemplo) aderiram a Collor, que Brizola chamava, com razão, de “filhote da ditadura”.

As relações da Folha com Collor foram tempestuos­as para dizer o mínimo. Ainda mais que o jornal, no cumpriment­o do mais básico princípio jornalísti­co (investigar estrelas ascendente­s em qualquer ramo de atividade), despachou três repórteres para Alagoas (eu, Gilberto Dimenstein e Elvira Lobato).

O que trouxemos de volta como balanço do governo dele era um retrato bastante ruim.

Em determinad­o momento, Collor me convidou (e a Dimenstein) para um café da manhã em um hotel de Brasília que só terminou depois da hora do almoço. No dia seguinte, escrevi que ele me parecia um novo Jânio Quadros, candidato a salvador da pátria (não é necessário lembrar o estrago que Jânio fez como presidente e com a renúncia ao cargo).

A ascensão de Collor só se consolidou mesmo quando começou o horário eleitoral de propaganda na TV, graças ao talento do marqueteir­o Chico Santa Rita, que falsificou um Collor estadista quando era apenas um aventureir­o.

Empurrou Collor também o fato de ter sido o mais desa- crítico do governo de turno, o do megaimpopu­lar José Sarney.

Fora da TV, a campanha de Collor era igualmente feérica. A chegada de sua comitiva à cidades médias em que faria comícios lembrava cenas de filmes de guerra, em que avionetas chegam em penca, uma atrás da outra.

Enquanto isso, Lula, que ainda não havia se amasiado com construtor­as como a Odebrecht, penava em aviões de carreira. Um dado dia, a comitiva do petista ficou travada em um aeroporto do interior do Paraná, esperando uma conexão que não chegava.

A horas tantas, José Carlos Espinoza, um metroviári­o que fazia as vezes de segurança de Lula, corpo de lutador de boxe, alma de filósofo, aproximou-se do chefe e desabafou: “Lula, se tudo der certo, absolutame­nte certo, e nada, nada der errado, nós estamos é ferrados” (“ferrados” não foi bem a palavra usada).

No dia da eleição, se acordei me sentindo roubado, fui dormir angustiado: a pesquisa boca de urna do Datafolha dava, como imaginado, o primeiro lugar para Collor, mas, no segundo lugar, havia empate técnico entre Lula e Brizola, com vantagem para o petista.

Otavio Frias Filho, o diretor de Redação, convocou uma reunião atrás da outra para decidir a manchete do dia seguinte.

No limite para o fechamento, Antonio Manuel Teixeira Mendes, então responsáve­l pelo Datafolha, explicou que o empate técnico estava no limite da margem de erro. Otavio bateu o martelo, e a manchete foi que Collor e Lula iriam para o segundo turno.

Era um risco, claro, ainda mais evidente quando as primeiras apurações colocaram Brizola à frente de Lula. Mas acabou sendo um acerto.

A “minha” eleição terminou ali. No segundo turno, fui cobrir o pleito no Chile e só voltei para votar.

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Chico Ferreira - 9.ago.89/Folhapress
 ?? Lula Marques - 4.mar.89/Folhapress ?? 4 1 Collor durante passeata, em agosto de 1989, em Niterói (RJ); na ocasião, houve desentendi­mento de apoiadores do candidato com brizolista­s; 2 Outdoor da campanha do candidato em SP; 3 Pescadores com bandeira de Collor em Maceió (AL); 4 Collor passeia de jet ski no Lago Norte, em Brasília, em março de 1999
Lula Marques - 4.mar.89/Folhapress 4 1 Collor durante passeata, em agosto de 1989, em Niterói (RJ); na ocasião, houve desentendi­mento de apoiadores do candidato com brizolista­s; 2 Outdoor da campanha do candidato em SP; 3 Pescadores com bandeira de Collor em Maceió (AL); 4 Collor passeia de jet ski no Lago Norte, em Brasília, em março de 1999
 ?? Carlos Goldgrub - 19.jul.89/Folhapress ?? 2
Carlos Goldgrub - 19.jul.89/Folhapress 2
 ?? Jorge Araújo - 14.nov.89/Folhapress ?? 3
Jorge Araújo - 14.nov.89/Folhapress 3

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