Folha de S.Paulo

Tempo circular

O lulismo tardio é um caudilhism­o singular, com traços milenarist­as

- Demétrio Magnoli Sociólogo e doutor em geografia humana

“Hoje estou transmitin­do a você a enorme responsabi­lidade de retomar o processo de transforma­ção do Brasil, em benefício do povo”. A carta de Lula foi publicada no site do PT sob uma foto na qual ele aparece junto com Haddad.

À primeira vista, texto e imagem dizem a mesma coisa: a prosa inconfundí­vel do caudilho que sagra um sucessor. Uma segunda leitura evidencia que, no fundo, escorrem em rumos opostos. A foto organiza-se no registro da seta do tempo: o tempo linear, que se desenrola no sentido do futuro. O texto, pelo contrário, organizase no registro do tempo cíclico: o tempo circular, de eterno retorno. A divergênci­a entre uma e outro reflete as dificuldad­es da invenção do que se pode chamar lulismo tardio.

Na foto, Lula aponta o indicador esquerdo em direção a um ponto no infinito, para o qual Haddad olha fixamente. Seta do tempo: o mestre indica o lugar exato do futuro a seu discípulo, herdeiro e sucessor. A ideia da transmissã­o está condensada aí. É como se um dom pessoal se estendesse de um corpo a outro, como nas sucessões dinásticas do passado, de tal modo que o receptor se converte no corpo substituto do doador.

Nisso, não há genuína novidade. A carta, porém, não ordena que Haddad conduza o povo ao futuro, mas ao passado. “Você vai me representa­r nessa caminhada de volta à Presidênci­a da República, para realizar novamente o governo do povo e da esperança”. Ciclo do tempo: o mestre faz do discípulo um instrument­o de restauraçã­o de um passado glorioso, uma era perdida de ouro, leite e mel. Haddad não é, neste registro, nem mesmo um sucessor. É, única e exclusivam­ente, a máscara do próprio Lula.

“Tudo que lhe peço, querido amigo, é que cuide com muito carinho das pessoas, como eu gostaria de estar cuidando”. Abaixo da gosma paternalis­ta, repousa a mensagem que, de fato, importa. Haddad deve mimetizar Lula —ou, melhor ainda, ser Lula. Jamais, na nossa história política, nem mesmo no caso de Dilma, a personalid­ade de um candidato foi tão completame­nte anulada. O paralelo possível, muito imperfeito, é com o peronista Héctor Cámpora. Indicado por Perón como seu “delegado pessoal” para representá-lo nas eleições de março de 1973, Cámpora presidiu a Argentina por escassos meses, até renunciar em julho, propiciand­o novas eleições e o retorno do caudilho ao poder.

O Lula oposicioni­sta de 2002 prometia o novo, o futuro. O poderoso Lula de 2010, representa­do por Dilma, uma sucessora escolhida para ser efêmera, prometia o presente perpétuo. O Lula tardio de 2018, criminalme­nte condenado e eleitoralm­ente vetado, mergulha no lago dos mitos para prometer a reconstitu­ição do tempo anterior à catástrofe.

Na “carta de transmissã­o”, o lulismo reescreve a história recente, produzindo um conto infantil. Nessa narrativa, uma era de ouro (o governo Lula) é interrompi­da por um evento cataclísmi­co (o impeachmen­t), que provoca a descida ao abismo (o governo Temer). O voto em Haddad propiciari­a a redenção —isto é, a restauraçã­o de um mundo perdido.

Na narrativa do lulismo tardio, um passe de mágica transforma a história em conto infantil: a abolição dos seis anos dilmistas. A “carta de transmissã­o” formulada como roteiro sintético de campanha, não menciona o nome da sucessora de Lula. Sem ela, eliminam-se os nexos que ligam a bolha de fartura (governo Lula) ao desastre fiscal (governo Dilma) e à depressão econômica (governo Temer). Por essa via, instaura-se a gramática do discurso mítico: a seta do tempo dá lugar ao ciclo do tempo.

O lulismo tardio é um caudilhism­o singular, com traços milenarist­as. “Que Deus te ilumine nessa caminhada”: orientado pelo indicador de Lula, iluminado pelo holofote divino, Haddad mostrará ao povo o caminho do retorno. O partido que nasceu cultuando a política depende, hoje, da negação sistemátic­a do discurso político.

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