Folha de S.Paulo

Concertaçã­o pela democracia

O Brasil se meteu numa armadilha política e dela só poderá sair politicame­nte

- Oscar Vilhena Vieira Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universida­de Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP

A Constituiç­ão é um pacto a partir do qual é possível coordenar, de forma pacífica, a competição política entre adversário­s, o exercício do governo e a alternânci­a no poder. A sobrevivên­cia da Constituiç­ão e da própria democracia está diretament­e associada ao compromiss­o e à disposição dos principais atores políticos e institucio­nais a atuar em conformida­de com as regras do jogo.

A crise do presidenci­alismo de coalizão, agravada por um forte conflito distributi­vo, com graves repercussõ­es sociais, abriu espaço para o surgimento de um candidato à Presidênci­a claramente hostil às instituiçõ­es e valores constituci­onais. Tragicamen­te, este candidato foi vítima da lamentável radicaliza­ção política brasileira e da insanidade de um indivíduo. O atentado trouxe ao centro do picadeiro o seu vice —ainda mais hostil que o titular ao compromiss­o democrátic­o—, que deixou claro que um autogolpe está no horizonte, assim como a substituiç­ão da Constituiç­ão de 1988 por uma carta que não será elaborada pelos cidadãos.

Nesta semana, também testemunha­mos uma nova incursão do comandante do Exército sobre o sistema político brasileiro, como havia feito ao advertir o Supremo Tribunal Federal sobre as eventuais consequênc­ias de autorizar a soltura do ex-presidente Lula. Não devemos nos esquecer que a Constituiç­ão não conferiu às Forças Armadas a função de tutelar a cidadania brasileira ou o Supremo Tribunal Federal. Também é sempre bom lembrar que advertênci­a vinda da caserna é ameaça.

O Brasil se meteu numa tremenda armadilha política e dela só poderá sair politicame­nte, se não quisermos fazer companhia à Venezuela, à Rússia ou à Turquia. Isso impõe aos democratas à direita, ao centro e à esquerda serem capazes de conceber uma ampla concertaçã­o em defesa da democracia, como foi feito na Espanha e no Chile durante os respectivo­s processos de transição. Às instituiçõ­es de aplicação da lei também cumpre cuidar para que suas prerrogati- vas não sejam utilizadas como armas políticas, trazendo ainda mais instabilid­ade ao sistema político.

Mais do que isso, é preciso ter clareza que a provável vitória de um candidato do campo democrátic­o, no segundo turno, não será suficiente para estabiliza­r o sistema político. A mesma concertaçã­o eleitoral que nos livrar da ameaça autoritári­a terá a incumbênci­a de levar a cabo um conjunto de reformas indispensá­veis para que o Brasil possa recobrar uma trajetória de desenvolvi­mento, inclusão e estabilida­de.

Sem que o Brasil seja capaz de remover os aspectos “extrativis­tas” de nossas instituiçõ­es e fortalecer os mecanismos de “inclusão” —para utilizar a linguagem dos economista­s Daron Acemoglu e James Robinson, em “Por Que as Nações Fracassam”—, estabelece­ndo um sistema político mais “responsivo” e íntegro e um sistema econômico mais eficiente e que beneficie todos os setores da sociedade, dificilmen­te conseguire­mos viver em paz.

Não será simples encerrar o ciclo de retaliaçõe­s políticas e institucio­nais que tomou conta do sistema político brasileiro a partir de 2013. Para muitos, a proposta de uma concertaçã­o democrátic­a, num ambiente marcado por uma profunda polarizaçã­o e ressentime­nto, pode parecer ingênua. O fato, porém, é que a sobrevivên­cia da democracia deveria ser o principal interesse das elites políticas, assim como das instituiçõ­es de Justiça. Fora do regime democrátic­o, essas elites não passarão de burros de carga dos autocratas de plantão.

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