Universalidade relativa do fair play
Final do Aberto dos EUA mostra que tempos mudaram, mas certas regras não
Algumas tradições foram inventadas há tanto tempo que não se tem ideia de quando elas nasceram. No campo esportivo isso é fácil de datar. Elas surgiram junto com a regulamentação do esporte que aconteceu na Inglaterra.
Volto a esse tópico para argumentar que as regras e a moralidade que hoje são cobradas dos atletas vêm desse lugar e desse momento.
Vale lembrar que a regra no esporte é como um idioma. Permite que todos os atletas, de diferentes partes do mundo, originários de diferentes culturas conversem/joguem entendendo perfeitamente o que o outro quer dizer. É isso o que faz o esporte ser uma linguagem universal.
Do ponto de vista técnico isso está resolvido. O que é falta, o que é vantagem, se um ponto valeu ou não. A objetividade desses quesitos facilita muito a vida de árbitros e demais envolvidos na competição.
O que provoca dúvida, no entanto, são as questões morais. E nesse ponto voltamos às origens do esporte.
Nunca é demais lembrar que o esporte é um fenômeno sociocultural que tem suas origens em uma sociedade que vivia de um modo muito específico. Seus valores morais estavam pautados em uma forma de agir e pensar que produziram, entre outras coisas, uma doutrina religiosa que rompeu com a igreja católica e promoveu a revolução industrial.
É também dessa sociedade que emergiu o ethos cavalheiresco responsável pela forma como um grupo específico pensou e organizou o esporte.
Foram esses homens que pensaram o esporte para ele ser o que é. Foram também eles que afirmaram ser o fair play o padrão moral a sustentar o comportamento de gentis homens (e não mulheres, é bom que se diga) praticantes dos jogos institucionalizados, regrados e universalizados.
Foram eles que, usando a si mesmos como exemplo, apontaram para o mundo e definiram que jogadores que não se portassem conforme as regras de boa conduta seriam considerados não apenas faltosos, mas ,sobretudo, maus exemplos, imorais.
E assim atletas de diferentes gerações nasceram, cresceram, venceram e perderam ouvindo a missiva do jogo limpo.
Jogar limpo é muito mais do que respeitar a regra. Se a regra existe, a obrigação do atleta é obedecê-la. Lei é lei. Respeito é uma outra coisa.
Respeito é uma atitude valorosa, uma virtude, que envolve consciência de si mesmo e do outro. Portanto, faz parte do conjunto de valores aprendidos do grupo social ao qual a pessoa pertence.
E aí está a relatividade da universalidade do fair play. Como regra ele pode até ser universal, mas não como valor.
Não é difícil tornar uma regra universal quando se é o dono da bola e da norma que rege aquele determinado jogo. Mas não se pode exigir uma atitude valorosa quando árbitros de uma mesma modalidade avaliam atitudes semelhantes com punições diferentes.
A partida final do torneio feminino do Aberto dos EUA mostra isso. Homens discutem com árbitros e são considerados abusados. Uma mulher com o histórico de Serena Williams é considerada mau exemplo e merece ser criticada e punida com os rigores da lei.
É sempre bom lembrar que há modalidades nas quais os atletas são impedidos de se dirigir ao árbitro e em outras em que o jogo limpo vale mais do que a própria norma.
Muito pouco ou nada se sabia a respeito de multiculturalismo nos tempos em que as regras do esporte e do fair play foram criadas.
Em um mundo em que prevalecia o colonialismo não era difícil impor a vontade do mais forte. Os tempos mudaram, mas algumas regras ainda não.