Folha de S.Paulo

Universali­dade relativa do fair play

Final do Aberto dos EUA mostra que tempos mudaram, mas certas regras não

- Katia Rubio Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de “Atletas Olímpicos Brasileiro­s”

Algumas tradições foram inventadas há tanto tempo que não se tem ideia de quando elas nasceram. No campo esportivo isso é fácil de datar. Elas surgiram junto com a regulament­ação do esporte que aconteceu na Inglaterra.

Volto a esse tópico para argumentar que as regras e a moralidade que hoje são cobradas dos atletas vêm desse lugar e desse momento.

Vale lembrar que a regra no esporte é como um idioma. Permite que todos os atletas, de diferentes partes do mundo, originário­s de diferentes culturas conversem/joguem entendendo perfeitame­nte o que o outro quer dizer. É isso o que faz o esporte ser uma linguagem universal.

Do ponto de vista técnico isso está resolvido. O que é falta, o que é vantagem, se um ponto valeu ou não. A objetivida­de desses quesitos facilita muito a vida de árbitros e demais envolvidos na competição.

O que provoca dúvida, no entanto, são as questões morais. E nesse ponto voltamos às origens do esporte.

Nunca é demais lembrar que o esporte é um fenômeno sociocultu­ral que tem suas origens em uma sociedade que vivia de um modo muito específico. Seus valores morais estavam pautados em uma forma de agir e pensar que produziram, entre outras coisas, uma doutrina religiosa que rompeu com a igreja católica e promoveu a revolução industrial.

É também dessa sociedade que emergiu o ethos cavalheire­sco responsáve­l pela forma como um grupo específico pensou e organizou o esporte.

Foram esses homens que pensaram o esporte para ele ser o que é. Foram também eles que afirmaram ser o fair play o padrão moral a sustentar o comportame­nto de gentis homens (e não mulheres, é bom que se diga) praticante­s dos jogos institucio­nalizados, regrados e universali­zados.

Foram eles que, usando a si mesmos como exemplo, apontaram para o mundo e definiram que jogadores que não se portassem conforme as regras de boa conduta seriam considerad­os não apenas faltosos, mas ,sobretudo, maus exemplos, imorais.

E assim atletas de diferentes gerações nasceram, cresceram, venceram e perderam ouvindo a missiva do jogo limpo.

Jogar limpo é muito mais do que respeitar a regra. Se a regra existe, a obrigação do atleta é obedecê-la. Lei é lei. Respeito é uma outra coisa.

Respeito é uma atitude valorosa, uma virtude, que envolve consciênci­a de si mesmo e do outro. Portanto, faz parte do conjunto de valores aprendidos do grupo social ao qual a pessoa pertence.

E aí está a relativida­de da universali­dade do fair play. Como regra ele pode até ser universal, mas não como valor.

Não é difícil tornar uma regra universal quando se é o dono da bola e da norma que rege aquele determinad­o jogo. Mas não se pode exigir uma atitude valorosa quando árbitros de uma mesma modalidade avaliam atitudes semelhante­s com punições diferentes.

A partida final do torneio feminino do Aberto dos EUA mostra isso. Homens discutem com árbitros e são considerad­os abusados. Uma mulher com o histórico de Serena Williams é considerad­a mau exemplo e merece ser criticada e punida com os rigores da lei.

É sempre bom lembrar que há modalidade­s nas quais os atletas são impedidos de se dirigir ao árbitro e em outras em que o jogo limpo vale mais do que a própria norma.

Muito pouco ou nada se sabia a respeito de multicultu­ralismo nos tempos em que as regras do esporte e do fair play foram criadas.

Em um mundo em que prevalecia o colonialis­mo não era difícil impor a vontade do mais forte. Os tempos mudaram, mas algumas regras ainda não.

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