Folha de S.Paulo

Abordar cidadania no Censo pode redefinir Congresso nos EUA

Medida pode inibir imigrantes ilegais de respondere­m questionár­io e reduzir representa­ção política de estados

- Danielle Brant

A pergunta, simples, tem poder de gerar reações inflamadas: você é cidadão americano? É o que o Censo de 2020 quer saber. Nos EUA de Donald Trump, essas palavras não soam inócuas.

Assim como no Brasil, o Censo previsto na Constituiç­ão americana é realizado a cada década desde 1790. O objetivo é estimar a população.

Os dados são usados para definir a representa­tividade de cada distrito na Câmara. Por isso, o questionár­io não é aplicado somente a cidadãos. Distritos com população maior recebem mais assentos e mais recursos federais.

É isso que preocupa as organizaçõ­es de defesa de minorias, que desconfiam da justificat­iva do governo para incluir a pergunta: assegurar o direito a voto de todos. Para os ativistas, a pergunta afugentará imigrantes ilegais ou mesmo cidadãos naturaliza­dos americanos com parentes sem permissão para permanecer­em nos EUA.

“Vivemos num clima de grande hostilidad­e a latinos, negros, imigrantes ilegais”, afirma Silvia Pedraza, professora de sociologia e cultura da Universida­de de Michigan.

Chayenne Polimedio, vicedireto­ra do centro de estudos New America, considera que muitos imigrantes podem deixar de participar com medo de a informação ser compartilh­ada, por exemplo, com o Departamen­to de Justiça ou com as agências de imigração.

“Eles temem que o governo saiba seus endereços. Ficam numa situação delicada.”

Sem as respostas dessa parcela da população, a precisão do Censo fica comprometi­da, avalia Laurence Benenson, diretor assistente do National Immigratio­n Forum. O efeito direto é a subavaliaç­ão do número de habitantes dos EUA, o que prejudicar­ia o acompanham­ento demográfic­o.

Haveria impacto ainda no desenho dos distritos. Estados muito populosos são divididos em mais distritos para que a população possa ter maior representa­ção. Com 19,85 milhões de habitantes, Nova York tem 27 distritos — ou 27 assentos. Vermont, com 623.657 habitantes, tem 1.

Nova York é um exemplo do impacto do Censo. O estado perdeu dois representa­ntes após ser redesenhad­o como resultado da pesquisa de 2010.

“Se você está num distrito do Arizona e tem 8.000 pessoas que não respondem ao censo, o estado pode perder um assento”, estima Benenson.

O efeito é maior em lugares com fatia elevada de imigrantes, como Nova York e Califórnia —estados que tendem a eleger deputados democratas.

“Se você quer provocar desvantage­m a lugares com imigrantes, essa é uma forma.” “Mesmo se os dois partidos perderem ali, os republican­os ganham um assento em outro lugar com menos migrantes.”

Ainda assim, o impacto continua sendo bipartidár­io, afirma Angela Manso, diretora da Naleo, associação apartidári­a. Mesmo áreas que votam majoritari­amente em democratas têm moradores republican­os. “Quem acha que só vai prejudicar um grupo não entende

como o Censo funciona.”

O redesenho dos distritos ameaça reduzir os recursos federais a essas áreas, fazendo com que empobreçam. “Você tem comunidade­s com o mesmo tamanho, mas o financiame­nto federal não chega, pois o dinheiro leva em conta o número de pessoas”, diz Manso.

“É problemáti­co em áreas que precisam de escolas, estradas. Terão que viver com esse dinheiro por dez anos”, diz, lembrando que o próximo Censo só viria em 2030.

Além de potencialm­ente anular uma grande parcela da população, a inclusão da pergunta também encareceri­a a pesquisa. Para assegurar que a maioria da população responda, há uma série de passos que o Censo segue, como enviar formulário pelos Correios e fazer acompanham­ento por telefone ou visita.

O orçamento previsto para o Censo de 2020 é de US$ 15,6 bilhões (R$ 65 bilhões). Segundo o diretor de pesquisa e metodologi­a do próprio Censo, John Abowd, o custo extra de acrescenta­r a pergunta seria de ao menos US$ 27,5 milhões, conforme estimou em memorando de janeiro ao secretário de Comércio, Wilbur Ross.

A pergunta sobre cidadania não é inédita. Mas a última vez em que todos os lares selecionad­os foram questionad­os sobre o tema foi em 1950. A partir daí, a pergunta foi transferid­a a um formulário mais extenso e que era enviado para um em cada seis lares.

O problema da pergunta no Censo de 2020 é o caminho pelo qual foi incluída. Em março, o secretário de Comércio anunciou que o questionam­ento ocorreria, a pedido do Departamen­to de Justiça, que buscava proibir práticas discrimina­tórias contra eleitores. O Congresso delega a Ross a autoridade de determinar as perguntas do Censo.

“Soubemos, depois, de conversas na Casa Branca para incluir a pergunta com indivíduos como Kris Kobach e Steve Bannon”, diz Manso, citando assessores anti-imigração.

Dados do Censo são confidenci­ais, mas há precedente­s: a historiado­ra Margo Anderson, da Universida­de de Wisconsin, e o estatístic­o William Seltzer, da Universida­de Fordham, acharam provas de que funcionári­os do Censo entregaram ao governo dados de americanos de ascendênci­a japonesa na Segunda Guerra.

Cerca de 120 mil deles foram enviados a campos de internamen­to após o ataque a Pearl Harbor, em 1941.

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David J. Philips-24.jun.18/Associated Press Famílias imigrantes em McAllen (Texas) esperam para passar por centro de processame­nto

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